O Mais Importante é o que Fazemos com o que nos Acontece

Na correria louca do quotidiano falta o tempo e o que sobeja vai quase inteirinho para fugir aos aborrecimentos da vida. As coisas sucedem-se e impõem-se. E somos apanhados nesse redemoinho das coisas que temos de fazer e quase deixamos de ser, para sermos seres de fazeres.

Erling Kagge no livro “Silêncio na era do ruído”, “Qetzal”, página 37 refere um provérbio norueguês que diz… o mais importante de tudo é aquilo que fazemos com o que nos acontece…

Se ao que nos acontece nada fazemos, então o que somos vale pouco, porque não temos capacidade de aprender com as lições da vida.

Há anos que os media nos propõem que observemos e absorvamos, fazendo de nós verdadeiros basbaques.

Um dos mais curiosos acontecimentos mediáticos é a parasitação das desgraças; onde houver desgraças há câmaras.

Os incêndios que devastaram zonas do país instalaram-se dentro dos próprios ecrãs televisivos, explorando até à náusea o espetáculo da destruição com mil e um diretos e sobretudo chafurdando na desgraça humana, explorando-a, dando visibilidade às vítimas, tirando partido das fragilidades e passar, como notícia, a dor.

O microfone mediático para as vítimas é uma esperança de poder partilhar a desgraça, sobretudo face ao vil anonimato de quem só é notícia por ter visto a sua vida desgraçada. É um alívio poder dizer o que se sofre. E para observar e absorver. E anestesiar.

O poder político, a começar pela mais alta figura do Estado, tem estado onde acontecem essas medonhas catástrofes. A fazer o quê? Se as figuras do Estado não são bombeiros, se não são proteção civil, se não são socorristas, se não são psicólogos, se não são médicos, se não são maqueiros, se não são fotógrafos, que vão lá fazer? Qual é o contributo da sua presença?

Compreende-se a sua deslocação para participar em cerimónias evocativas para que as populações sintam que, do ponto de vista do Estado, há esse sentimento de solidariedade.

Vê-se, por todo o mundo, as primeiras figuras do Estado, a prestar homenagem às vítimas. Esse é o dever do Estado e de quem o representa.

Outro assunto é ter como atividade política passar, em todo o lado, onde há acidentes, sejam incêndios, sejam desastres de aeronaves, seja o que for.

Há como que uma infantilização do povo português, como se fosse incapaz de fazer luto e resistir e prosseguir a vida.

Por mais dolorosa que seja o incêndio na associação recreativa onde jogavam a sueca umas dezenas de populares, o que importa não é a compaixão de tal ou tal responsável político, mas sim o apuramento sério do que passou para evitar que o descuide impere seja em Tondela, seja num estádio de futebol, seja nas construções que devem obedecer a normas e que o nacional porreirismo desliga do cumprimento desses deveres.

Aos acidentes que ocorram por erro e negligência grave ou dolo há que apurar responsabilidades. Andar a choramingar e a botar sentença acerca do estado de espírito dos jogadores de sueca não é o que se exige a quem o dever de contribuir para apurar responsabilidades e dignificar as funções do Estado.

Ninguém merece a sorte dos que morreram no torneio da sueca por causa da salamandra instalada de tal modo que permitiu a desgraça. Mas o mais importante é trabalhar para impedir que volte a suceder.

Mais importante do que o que nos acontece, é o que fazemos com que nos acontece.

Na vida em comunidade, sabemos que há normas, e que é importante que sejam cumpridas, para que não aconteçam desgraças, e assim sermos capazes de agir para o bem de cada um e da comunidade.

Se sabemos que um dia um grande terramoto vai acontecer, sabemos que é decisivo prepararmo-nos para que ele nos encontre prevenidos.

O mais importante na vida não é apenas o que observamos e absorvermos, é o que fazemos com o que nos acontece. Mais vale o aborrecimento de ter de impedir o desleixo a milhares de fotos reconfortantes, cheias de homens com poder, e de pedidos de desculpa.

Texto publicado hoje no Público online.

 

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