Em Macondo, aliás Aracataca, Gabriel Garcia Marquez, morava ao pé da estação de caminho de ferro, e foi educado entre mulheres e ouvindo histórias mágicas contadas pelos criados índios.
Não sei se a vida de Erendira e da sua desalmada avó tem algo a ver com esse mundo mágico que passava de boca em boca.
Sob o pano de fundo da impiedade da avó de Erendira, a curta novela de Gabo é uma explosão de maldades humanas por entre o deserto, contrabandistas, um cantineiro e missionários, um microcosmo da região. E, ao mesmo tempo, uma narrativa plena de aconteceres fantásticos, como faz a avó( que não tem nome) ao obrigar os seus criados índios a levarem numa caixa com rodas e com os esqueletos dos Amadis, sendo um deles o pai de Erendira e o outro o que levou a avó de um prostíbulo para uma vida de luxo.
Rita Lello ao encenar esta novela sabia que tinha um desafio impressionante, e do qual se saiu muito bem.
Os diálogos na novela não são abundantes. A ação acontece ao ritmo das peripécias desta velha mulher que quer obrigar a neta a pagar os danos causados por incêndio na sua rica mansão; incêndio resultante pelo malévolo vento do deserto que derrubou o candelabro enquanto Erendira dormia. Para pagar o percalço, como lhe chamou a avó, a neta teria de se prostituir durante oito anos, sete meses e onze dias, disse-lhe a malvada quando a neta já arrastara atrás de si uma grande correnteza de homens para dela se servirem e pagarem à avó.
Alertados, os missionários, do que se passava levam Erendira para as Missões onde fica sujeita a lavar com água e cal, sem parar, as escadas do edifício.
Rita Lello recria o ambiente da novela através de elementos simples e que nos transportam ao imaginado tempo colonial – música, roupas, cantina, bicicletas e as próprias cargas que os índios transportam. Na ação cénica incorpora o vídeo que nos leva ao estupro do viúvo que comprou a virgindade, bem como à chegada ao deserto com água, que é o mar como diz Gabo. Diga-se que a arte foi recriar o ambiente desta malvada e alucinada mulher e do séquito com a fresca carne de Erendira. O autor da novela “Memória das minhas putas tristes” é o mesmo.
Com o correio a espalhar a chegada de Erendira instala-se um ambiente de festa que constitui a chega da avó com a neta. A encenação consegue-o com as acrobacias e a animação que vai desde a mulher aranha ao fotógrafo dos retratos que tem uma tela com cisnes brancos em pleno deserto. Tudo numa atmosfera de alvoroço caribenho.
É o filho jovem de um contrabandista holandês( traficante de laranjas, com pérolas no seu interior, devoto da Bíblia) que vai libertar Erendira após enamorar-se da jovem prostituta com quem perde a virgindade.
O curto diálogo da avó com Ulisses, a quem ela apelida de anjo sem asas, é quase irreal, dada a pureza de Ulisses e a perversidade da velha avó. Não deve ter sido por acaso que Gabo lhe deu o nome de Ulisses.
O de Homero, o herói da Odisseia, o solerte, o da estirpe dos deuses, regressa a Ítaca e mata os usurpadores do seu palácio que pretendiam esposar Penélope e apoderar-se das suas riquezas
O de Gabo, o anjo sem asas, é um jovem apaixonado por Erendira e que por amor vai matar a malvada avó.
O herói da Odisseia deixa atrás de si um rasto horroroso de mortes para se se vingar e alcançar finalmente a sua Penépole e a sua cidade, Ítaca.
O de Gabo vai travar com a avó de Erendira uma luta titânica depois da malvada velha não ter morrido, mesmo tendo comido um bolo com arsénio.
Trava-se então uma batalha brutal entre a poderosa velha e o anjo sem asas que a apunhala várias vezes e a mata abandonando-a à nudez do seu medonho cu. A mais bela mulher dos prostíbulos das Antilhas finalmente jaz de bruços no centro do palco.
E de novo o vídeo mostra-nos a fuga inimaginável de Erendira, a doce, com o colete cheio de lingotes de ouro da avó.
Grande encenação de Rita Lello e grandes interpretações de Maria Céu Guerra e Sara Frio.
domingos lopes