É humanamente aceitável que alguém ao volante de um veículo possa abalroar (voluntária ou negligentemente) um seu semelhante e deixá-lo na estrada consciente ou inconsciente à espera que outrem se aproxime e lhe preste a solidariedade necessária?
Quando o condutor do veículo atropela num ser humano, como ele, e, em vez de parar, foge para escapar a um julgamento que apure a responsabilidade desse embate, que sabe esse condutor acerca do estado em que fica a vítima?
O atropelamento, mesmo que possa resultar de uma impossibilidade de o evitar, impõe um dever de assistência – trata-se de um veículo contra um corpo de carne e osso.
O primeiro dever é o da consciência de quem conduz. Pelos vistos, segundo os dados públicos pelo Ministério da Administração Interna, houve em 2017 quatrocentos atropelamentos com a fuga dos condutores, o que equivale a dizer que há quatrocentos indivíduos que após embaterem em crianças, mulheres ou idosos, fugiram e deixaram os sinistrados totalmente desamparados.
Os humanos têm deveres para com a comunidade onde estão inseridos e um deles é de prestar auxílio a quem causarem lesões.
Nesse sentido, os deveres que cada um impõem a obrigação de prestar cuidado e auxílio à vítima. É, em certo sentido, a nobreza do único ser que à superfície da terra sabe, tem consciência, do mal que pode acarretar a omissão da ajuda.
Só um ser desprovido de humanismo, após atropelar outrem, por medo das responsabilidades, ou por desprezo pela vítima, foge e deixa-a abandonada a si própria, sem se certificar se é capaz de se proteger.
Não está em causa conhecer a responsabilidade de quem deu azo ao embate; mas sim de cuidar de alguém que precisa.
É algo que a sociedade tem de defender e impor ao seu conjunto de modo a que a indiferença, o abandono não se tornem normais. Quatrocentos foragidos são muitos. Antes de ser crime é ainda algo que enquanto cidadãos se coloca deste modo mais simples: sendo humanos, o que é mais humano, deixar a vítima à sua desgraça, ou por imperativo de consciência ir certificar-se das necessidades da vítima?
Quatrocentos foragidos são quatrocentos cobardes que, da baixeza do seu egoísmo, deixam ao abandono seres humanos fragilizados, a necessitar de auxílio.
De que fogem? Do mal que causaram? Da pressa em chegar ao local de trabalho ou a casa? Ou a tempo de verem desde o início o jogo de futebol? Ou o episódio da série que seguem? Ou a telenovela?
Há muito a fazer no terreno da repressão a estes tristes episódios de cobardia. Mas tenhamos a coragem de afirmar: é preciso investir mais no civismo.
É preciso que as condutas destes quatrocentos indivíduos sejam condenadas de forma veemente, não só nos tribunais, mas também na comunidade.
O cobarde que bate e foge, deve sentir, no local de trabalho ou de convívio, o repúdio perante essa vergonhosa atitude. É, pois, preciso mudar as mentalidades para diminuir o número de cobardes e de vítimas.