DOMINGOS LOPES, Contos e Crónicas do Alandroal e do Resto do Mundo, Âncora Editora, 2017
Do mundo do Alandroal ao resto do mundo
Paulo Sucena
Acabada a leitura de Contos e Crónicas do Alandroal e do Resto do Mundo, de Domingos Lopes, cuja obra anterior conheço bem, surgiram-me, de imediato, várias ideias. A primeira foi a de considerar distintas as duas partes do livro e considerar a primeira como composta de contos e a segunda de crónicas não só pelas diferenças dos discursos mas também porque as suas instâncias produtoras se distinguem claramente uma da outra. O narrador dos contos desenvolve uma sintagmática narrativa que pretende dar-nos a conhecer pormenores que dão sentido à intriga e simultaneamente mostrar-nos a realidade humana e social de terras à beira-Guadiana, situadas no concelho do Alandroal. O narrador das crónicas não pretende mostrar, aspira a questionar, umas vezes, e a reflectir noutras. No seu livro de estreia Manuel Alegre disse que “com mãos tudo se faz e se desfaz”. Nas crónicas de Domingos Lopes está subjacente a afirmação de que com o pensamento tudo se constrói.
Regressemos aos contos. Creio que muitos dos seus leitores e leitoras confessaram a pessoas amigas que os leram de enfiada, porventura porque para além do prazer da história há o prazer do discurso como diz algures Maria Alzira Seixo. Usando palavras de António Borges Coelho, diria que Domingos Lopes escreve ao rés da fala. Sem dalmática questiona, mais nas crónicas, evidentemente. Não segue o cânone. Persegue o rigor e o prazer da palavra. Com certeza que também por tudo isto os contos de Domingos Lopes exercem uma vera atracção sobre os leitores.
São histórias protagonizadas por gente das camadas sociais mais pobres (a maioria dos actores) acompanhada de outra provinda de estratos remediados e de um outro lavrador rico, habitantes de uma comunidade com suas grandezas e misérias, crenças e mitos, passividades e rebeldias, generosidades e mesquinhezes. À maneira de Flaubert, Domingos Lopes indaga e mostra os interstícios do quotidiano colectivo e pessoal de personagens controversas sem omitir o que de irracional há por vezes no comportamento humano nem quanto o sonho se pode sobrepor a uma realidade adversa. Este último aspecto levou-me em alguns momentos da leitura desta obra às cercanias do grande objecivo dos surrealistas de imbricar sonho e realidade.
Porém, o que motiva verdadeiramente o narrador é o mundo concreto da vida a Lebenswelt que preocupava Edmund Husserl nos meados da década de 30 do século passado. Neste livro de Domingos Lopes é o mundo dos deserdados, dos excluídos, do que insensivelmente transpõem o silêncio e solidão das planuras e das chapadas alentejanas para a bacidão das suas almas, que capta a atenção do narrador de tal modo que ouso dizer que a instância produtora destes contos tem raízes naqueles homens que afogavam em vinho o fardo de viver, por vezes tão pesado que os suicídios marcam a sua presença. O narrador sabe tudo deles, tanto que os contos se revestem frequentemente de um pendor antropológico, quando, por exemplo, na toalha do texto são colocados os lambiscos mais apreciados pelas personagens –tubarões na frigideira, tordos fritos, gaspacho, bacalhau frito (quando as bolsas andavam mais abonadas), caldetas do Guadiana, linguiças e queijos secos, arroz de lebre – ou põe no discurso abundantes copos de tinto ou de branco da Vidigueira.
Tudo isto contado sob o sopro da linguagem dos protagonistas por um narrador que dela se aproxima porventura por respeitar o pensamento do fenomenólogo alemão que afirmava que a linguagem é a morada do ser. Deste modo, considero que Domingos Lopes também pretendeu dar-nos uma visão ontológica das personagens. A tematização das diversas linhas de sentido geradas por estes contos leva-nos às gentes do Alandroal, região onde decorrem as histórias passadas em tempo da ditadura, de um modo tal que aquele pedaço do Alentejo nos surge como uma sinédoque, no seu eixo semântico mais significativo, de um verso de “Praça da Canção”, de Manuel Alegre: Minha pátria perfil de mágoas e tabernas.
Sendo fácil construir uma isotopia da “mágoa” neste conjunto de contos, vou dispensar-me disso assinalando, no entanto, o conto “Pedras de Água”, que dessa isotopia faria parte, tendo em conta, em primeiro lugar, a sua construção inusitada entregue a dois narradores diferentes. Um primeiro narrador assume o discurso dizendo “a carrinha Bedford avança avassaladora rumo ao Alandroal indiferente ao calor seco e espesso”, colocando o leitor perante uma narrativa de primeiro grau; um segundo narrador é responsável por uma narrativa de segundo grau encaixada na primeira. Sob este ponto de vista, topamos com um conto singular dentro do conjunto de contos deste livro, na medida em que a responsabilidade do discurso é repartida por um narrador extradiegético, produtor da narrativa de primeiro grau, e por um narrador intradiegético, um dos ocupantes da carrinha, nascido da instância narrativa de primeiro grau, e que vem a ser o responsável pela história que verdadeiramente se quer contar. Em segundo lugar, porque a história contada pelo narrador intradiegético, a da separação de uma criança do seu pai, adquire no discurso um tom acentuadamente pungente em que a pouco e pouco a fala do narrador vai gerando, à medida que a sua mágoa se acentua, um clima que nos comove pela intensa e pura humanização das relações intersubjectivas. Quanto mais pesado é o sofrimento do narrador mais humano o seu perfil nos surge.
O registo confessional deste conto percorre outros, seja o narrador homodiegético, isto é, participante na história, seja heterodiegético, isto é, ausente da história. Nos contos em que o narrador é heterodiegético, que são a maioria, a presença do narrador faz-se todavia notar no plano do discurso através de opiniões, comentários ou apreciações judicativas. Aliás, não considero, como às vezes leio, que haja narrativas na terceira pessoa, antes acompanho Gérard Genette que considera inadequada aquela formulação porque coloca “O acento da variação no elemento de facto invariante da situação narrativa, isto é, a presença, explícita ou implícita, da «pessoa» do narrador que não pode estar na sua narrativa, (…), senão na «primeira pessoa».” E é assim que o vemos, nos mais de vinte contos do livro, a manifestar-se a latere de uma forma ora discreta ora solidária, ora benevolente ora cruel, ora impiedosa ora tolerante, muitas vezes irónica.
Uma outra particularidade gostaria ainda de ressaltar nos contos de Domingos Lopes, o de eles “dispensarem” os heróis, dando assim razão a Boris Tomachevski que defende que “o herói não é de modo nenhum necessário à história. A história como sistema de motivos pode inteiramente dispensar o herói e os seus traços característicos”. Na verdade, mesmo quando personagens como Zé Inácio, do conto “A Greve”, ou João Comprido, do conto “A viagem do Comprido ao mundo dos sorvetes”, se afirmam pelo seu carácter, valentia e determinação o certo é que a sua acção ao longo da narrativa não se compagina com “os traços característicos” do herói. E não podia acontecer de outro modo num livro que, como atrás dissemos, do que trata é de anti-heróis, personagens das camadas populares cujo “heroísmo“é o de resistirem acriticamente a uma vida do quase nada.
É nestes cenários de desencanto e desespero, de angústia e alienação que se recorta, numa relação extravagante a eles, o perfil do coronel Austiclínio, Clínio para os íntimos, casado com Clélia. É uma das personagens mais bem conseguidas destes contos. Um narrador cruel só nos informa daquilo que pode apoucar ou cobrir de ridículo a figura do militar, homem glutão, submisso a Clélia que lhe dava reguadas quando se sujava ou se sentava à mesa sem maneiras, de raciocínio primário e linguagem quadrada, aprendida na cadeia militar de comando (a instituição militar também não fica bem no retrato), mas que tratava os seus subordinados com grande arrogância como aconteceu quando foi a Elvas fazer uma inspecção ao campo da carreira militar de tiro e tratou o sargento Varandim com uma insuportável petulância, ou rópia se preferirem a palavra do autor, que se não tinha intelectualmente em que se sustentar, fisicamente também não porque o coronel tinha uns pezinhos que calçavam sapatos 38. Deixo apenas uma amostra da maneira sábia como Domingos Lopes foi doseando o sarcasmo ao longo do conto.
Apresentados alguns dos aspectos que considero mais relevantes nestes contos, é o momento de olharmos as crónicas do resto do mundo ainda que só de relance. É curioso notar que, deixados de lado os pormenores da sintagmática narrativa dos dois textos que iniciam cada uma das partes do livro de Domingos Lopes – “Ai o que o cabrão do Cuco me fez!” e a “A Puta de Georgetown” (a crónica mais próxima da literariedade da ficção) – o que sobressai desses textos é a manifestação do egoísmo mesquinho do patrão do Cuco, indiferente ao suicídio do pobre homem e apenas preocupado com a carga de trabalho que lhe iria dar a existência de um cadáver preso na traseira do seu tractor. O egoísmo demonstrado por um ricaço grego, uma das personagens da crónica de Georgetown, é mais sórdido porque mais cínico e requintado. Essa poderosa figura, depois de ter passado a noite com a jovem prostituta negra, deixou de defender o seu direito a frequentar o hotel, como fizera na véspera, e apressou-se a dar-lhe uma nota para a ver rapidamente fora do local onde queria tomar o pequeno almoço sossegadamente. O narrador, que nunca se distrai com os mais fracos, informa-nos que a prostituta negra recebeu a nota de dez dólares, olhou os circunstantes, pôs o dinheiro em cima da mesa e saiu. Ficou no ar o ruído de uns “saltos altos a martelar a rua”. E nesse ruido, acrescento eu, flutuava um assomo de dignidade humana contra a vilania.
A esta primeira crónica seguem-se mais treze, nascida de viagens de Domingos Lopes ao Chile, à Jordânia, ao Nepal, à Síria, à Birmânia, a Malaca, a Singapura (só os portugueses chamariam pura a esta cidade!) e a Aracataca, terra natal de Gabriel Garcia Márquez que de algum modo inspira o autor quando escreve textos impregnados de um realismo fantástico. Gostaria ainda de acrescentar que na crónica “Macondo, aliás Aracataca”, o cronista entretece um jogo subtil entre a realidade empírica, Aracataca, e Macondo a realidade textual criada em “Cem anos de solidão”. Esta é uma crónica de que gosto particularmente, porque nela Domingos Lopes afirma o incomensurável poder da palavra – o de produzir uma realidade tão viva quanto o real e até por vezes, fundamentalmente na grande arte, mais brilhante e intensa do que a própria realidade recriada.
Numa visão global as crónicas do Resto do Mundo oferecem-nos um diversificado conjunto de reflexões sobre a morte e a efemeridade da vida, a materialidade e a espiritualidade dos humanos, a relação dos homens com os deuses e o papel de Portugal na história da humanidade. Esta última temática é exemplarmente abordada na crónica “O Sudeste Asiático” em que vêm à tona as marcas deixadas por Portugal no oriente, o apelo a que Portugal seja fiel à sua raiz universalista e cuide do ensino da nossa língua naquelas paragens, e, finalmente, que recuse o afunilamento das relações externas porque ele “nos faz mais pequenos e frágeis face aos Schäuble e às Merkeles e aos burocratas desta Europa sem alma”.
Eis o laço que cinge, ora de um modo ora de outro, estes contos e crónicas, a denúncia de um mundo sem alma e de um tempo em que os poderes tentam apagar o mundo concreto da vida (o Lebenswelt husserliano) ou, diria a finalizar, com palavras de Heidegger, discípulo do fenomenólogo alemão, um tempo em que as políticas promovem cinicamente “o esquecimento do ser”.
Creio que o valor primeiro destes contos e crónicas é o de, mesmo nos climas mais disfóricos gerados por uma progressiva degradação da vida das personagens, pretender mostrar e implicitamente condenar essas situações o que nos permite inferir que é imperioso defender sempre a dignidade dos humanos, recusando que o desenvolvimento científico, técnico e tecnológico os transforme em números, antes contribua para a afirmação cada vez mais plena do ser do homem.