A manhã acordara com morrinha persistente. O céu acinzentado ia derramando pingos finos de água sem se cansar. Era uma chuva tão branda que enganava os que não faziam caso dela e acabavam tão molhados por fora como por dentro.
As próprias árvores silenciosas como de costume arrepiavam a copa e os braços e a sua estaticidade deixava o mundo vivo mais melancólico.
Os homens que se levantam cedo, quase todos já a fugir dos sessenta anos, conversavam na taberna do Zé Russo.
Quem entrava na taberna olhava e dava conta que nos olhos de cada um havia uma sombra feita de fios miúdos de água e a chuva molhava não se sabe que parte da alma; todos estavam muito quietos e sem chama que se visse.
Os velhos com as duas mãos agarradas ao cajado aguardavam as últimas notícias da ida do Amendoeira ao padre para que este aceitasse a nova casa mortuária.
Ficar na igreja à espera do enterro custava cento e oitenta euros; na nova casa doada pela cooperativa ficava por oitenta.
Já não havia muita gente à espera da senhora da foice; e não se dava notícia de que havia qualquer batizo à espera. Em breve a aldeia ficaria sem ninguém. Ficaria a placa? Que pode suceder a uma terra que deixa de ter a gente que a fez?
Os velhos nem todos têm para o café. Os que têm bebem-no. O dono dá um rebuçado São Brás a quem o bebe à espera que peça um bagacinho.
Para ali estão. Os seus estão longe. Lisboa. Lausanne. Dusseldorf. Londres. Onde haja emprego.
Aqui pagam para os bancos. Eles e os outros. Têm os dias que vierem. Não passam bem. Vivem como podem. O que os trama é a saúde, os medicamentos …
Dizem os governantes e os que habitam na televisão que por causa deles estamos mal. Os velhos querem o que o sistema não lhes pode dar, afirmam todos à uma.
Ganham por esse serviço muitas mais vezes que aqueles que viveram acima das suas possibilidades e que ali em Ferreira na verdade nunca deu para sair da terra.
Estes e outros velhos são encargos pesados para as voltas que o mundo está a dar. Os que agora são mais novos terão a sua vez de serem velhos. E dependendo do que descontaram na edificação do país de todos, se não mudarem as voltas ao mundo vão também eles ficar à espera de morrerem de opróbrio – o de serem pobres.
Este é o mundo em que vivemos: os que têm muito e quererem muito mais levaram o mundo à beira do desastre, mas querem que o desastre seja pago também por velhos sem quase nada.
Tiraram-lhe parte da reforma, feriados, a possibilidade de irem à farmácia, como iam. E amaldiçoaram-nos por não compreenderem que se empobrecerem ficam melhores. Salvando os ricos.
A aldeia esvazia-se de gente. Quando nascerá uma criança? Nascerá? Por que andam tão contentes Cavaco, Passos e Portas?
Esta morrinha que vai na alma dos velhos sob a forma de resignação dá-lhes esse contentamento. Estarão Cavaco, Passos e Portas seguros ou cegos?
Esta é uma descrição real do de um pais , assentando num de tantos exemplos de aldeias como esta.
Uma forma mais além de ver o futura de uma aldeia, vila, cidade, e país deste país.
Continue.
Alguém tem de ter coragem.
Rui Romão.
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