Sequei e Morri Sem ter Sentido que Morri

In Jornal de Letras 05/04/2023

É um novo romance, com o título acima, que chega ainda esta semana às livrarias, com a chancela da Guerra & Paz. Aos 73 anos, advogado, presidente do Fórum pela Paz e pelos Direitos Humanos, ex secretário de Álvaro Cunhal e dirigente do PCP, que entretanto abandonou mas sobre o qual escreveu dois livros (um no centenário do partido, outro de memórias) Domingos Lopes dá agora alume o seu sexto título de ficção. De que antecipamos um excerto e do qual fala ao JL (ver caixa)

“(…) Pois eu tenho de confessar que, ao exilar -me em Fátima, fiquei sem rede, sem gente com quem partilhar as minhas amar guras e, portanto, ao contrário dos que se rebolam com os amigos nas dores, eu tive de fazer a travessia sozinha, o que num pnnieiro mo mento me deixou mal, mas depois mais forte.

Trazia o peso na alma do abandono do Sérgio, de não o ter e de aprendera viver sem ele, Muitas vezes travei comigo uma batalha sem tréguas para resistir ao ímpeto de lhe telefonar, houve momentos em que quase fraquejei, já não me lembro o que fiz para não lhe telefonar.

À medida que o tempo passava, diminuía a pressão para entrar em contacto com ele, nunca em relação ao meu amor por ele, esse ainda hoje é efetivo.

Na altura, não tinha a consciência nem o conhecimento que de mim hoje tenho. Fui para Fátima como quem se atira contra uma onda gigante, sabendo que se a furar vem a acalmia, O tempo ajudou a encontrar o sentido que havia dentro do meu inconsciente e guiou -me. Já lá vão quase 40 anos e, no entanto, na minha memória, o que de mais saliente ficou foi a chuva impiedosa que cala no largo do recinto e da freira que me levou para o convento. A chuva caía, caía e eu sentia no frio uma expurgação. Esse é o traço grosso da memória. As lembranças são muitas, fazendo um esforço à procura do que realmente aconteceu, para não me enganar, e quando estou a falar contigo e como sempre fazes muitas perguntas, eu entro dentro dessa caixa onde estão as coisas vividas e escabulho-as para te poder responder e reparo que as respostas são também para mim, marcos que vamos adicionando ao longo do caminho andado; só é possível esse exercício quando nos confrontamos com o passado que outra pessoa nos faz emergir e então pensamos de modo cada vez mais completo, porque ao nos empenharmos para regressar ao que fomos, podemos ver de modo mais esclarecido o que nos aconteceu, melhor, o que fizemos acontecer.

O que sou hoje não é muito diferente do que era, exceção feita à experiência adquirida, que nos vai moldando.

Se fosse outra pessoa que andasse como estamos a caminhar no Estádio Nacional, por entre a mata sempre fresca, a nossa conversa nunca tomaria este rumo, é preciso confiarmos na pessoa com quem falamos e que haja unia corrente que leve de um para o outro, neste caso, a corrente pode ser este silêncio dos ténis a bater no chão cheio de folhas entrecortado por uma pergunta ou outra ao longo deste caminhar.

Pode -te parecer estranho, mas o Sérgio entrou debaixo da minha pele e faz parte de mim, oiço o Sinatra vezes sem conta a dizer que alguém está debaixo da sua pele; admito que é memória e nada mais, pois não falo com ele há quarenta anos e muito prova velmente ele hoje será um homem totalmente diferente, não sei, mas deve ser. A verdade é que nos anos em que estivemos juntos, ele foi um referencial tanto ao nível das ideias, fez de mim uma comunista, como a nível de homem. Eu nunca fui de procurar namorados e ele foi o primeiro e devo esclarecer -te que a sua postura em relação a mim foi de uma ternura impressionante, ele impunha –se pelo quase silêncio, pela coragem contida e até por uma fragilidade comovente. Ele não era destemido, era calmo e a sua meiguice tornava -o forte porque a sua própria necessidade de proteção fazia –o ter uma dimensão muito mais próxima daquilo que eu apreciava como a mulher jovem que eu era na altura, ou seja, ser eu e nesse registo ser valorizada pelo Sérgio; eu era como era e esse ser de então sentia que o Sérgio lhe dava muito valor, assim nos dávamos de um modo tranquilo; tudo isto à distância de todos estes anos.” JL

“Um monólogo copioso”

“Quem é esta conservadora que se tornou comunista, mas que acredita num Ser superior? Uma mulher que se revê no PCP ortodoxo que não deve fazer qualquer acordo com o PS ou outro partido? Uma mulher que, abandonada pelo marido, se

refugia em Fátima, apesar de ter militado na 5ª divisão do MFA e continuar a ser comunista? Será incompatível ser-se comunista e crente num Ser superior? Dar ajuda humanitária a refugiados ucranianos, mas defender a invasão russa? Ser-se

bela e atraente e não querer sexo? “, é com esta catadupa de perguntas que a Guerra & Paz inicia a descrição/promoção de Sequei e Morri Sem ter Sentido que Morri. E o autor que diz?

JL: Como ‘classifica’, em breves palavras, este seu novo livro?

Domingos Lopes: E uma novela ancorada num monólogo copioso, desprotegido pelo impulso da justificação do amor sucedido e cuja rejeição foi e é para aquela mulher, a protagonista, inaceitável. A rejeição do amor por parte do homem que amava e ama é a bola de salvação para enfrentar os tristes dias sem o amor que lhe dava a luz de todos os dias.

E daí…

Essa mulher conta a um antigo colega dos anos da revolução de Abril de 1974 que é ela quem o prende e, por o ter preso, ela já não pode ser de outro ou outros. O poder do amor faz de unia católica conservadora uma militante comunista ativa, assim como o poder destrutivo do divórcio a leva a fugir da Faculdade de Direito de Lisboa, que então frequentava, para um refúgio espiritual em Fátima.

Quer dizer que a sua paixão por ele se mantém?

A paixão não se extingue com o rompimento, prolonga-se em função da localização da memória na superfície ou na profundidade dos lagos onde vive. Quando a memória subjuga, como um sequestro, o próprio presente fica prisioneiro do passado. E essa mulher fala como se o que diz fosse o único juízo possível para aquilatar da ordem das coisas, por mais que viva há uma parte dela que secou e ela morreu sem ter percebido que tinha morrido.

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