Os pintores de canos e o que o teatro é capaz de pintar na Barraca

O mundo tem lugares nada aconselháveis, muitas vezes invisíveis, outros para onde não queremos olhar para podermos continuar a fazer de conta, mas felizmente não só há luar, como também há o teatro que nos ilumina, que nos fustiga, que nos remete à nossa condição de humanos, sim, nem sempre parece, mas há dezenas de milhares de anos que o somos.

Tirésias, cego e adivinho, no Rei Édipo de Sófocles, diz a certa altura… Tudo o que tem de suceder sucederá… A verdade é que mal abre o pano de cena e assistimos ao primeiro diálogo do chefe daquele mundo infernal de canos e escuridão fica claro que algo iria suceder.

Uma perceção com que Adérito Lopes nos quis confrontar fazendo sentir que aquele mundo existe e que lá no topo, a milhares de degraus acima do reino da escuridão em que os pintores pintam, há o Conselho de Administração.

E quando chega o novo pintor, quase podia ser filho do operário que já lá trabalhava, mais evidente se torna o vaticínio do velho Tirésias.

O candidato a pintor acha que não nasceu para aquilo, mas é “aquilo” o que tem à mão. Cedo dá conta que aquele mundo é insuportável, o que não tem o apoio do mais velho que há dezenas de anos pinta de vermelho o que é vermelho, azul o que é azul e cinza o que é cinza. E que pintando e responsabilizando-se por aquele mundo de centenas de quilómetros de anos terá dinheiro para chegar a casa e pagar as despesas nem que seja à risca quando a renda da casa aumenta.

Entre eles surge um conflito cuja origem reside no sentido da responsabilidade do mais velho em respeitar as cores dos canos dado o facto do camarada ter pintado de cinza o vermelho, o que lhe estava vedado pelas suas instruções dos superiores.

 Entre o mundo da segurança do emprego cumprindo com todos os encargos dos chefes e a irreverência do mais novo explodem várias disputas, sendo que por detrás delas subjaz invisível algo que os une. Algo que não é nunca explícito, mas que paira no mundo daqueles dois operários.

O mais novo tem outros horizontes entre eles descobre o da fotografia. O mais velho não resiste e pede-lhe uma fotografia dos dois; só que o camarada ainda não tem a máquina fotográfica.

O mais velho tem três filhos, segundo ele todos bem colocados e o mais novo não quer casar, o que não é compreendido pelo mais velho que tenta explicar ao outro que chegar a casa e ter a mesa posta e uma televisão com acesso aos jogos de futebol. A alienação que ainda não penetrara no mais novo.

Quando ambos estão finalmente ligados pelos laços da classe de pintores de canos sucede o que desde o primeiro vislumbre da cena se perscruta. Naquele mundo de feroz exploração acontece uma fuga de gás com consequências terríveis.

O teatro tem isto: põe-nos pensar e o simples ato de pensar num mundo anestesiante de canos e mais canos por onde nos perdemos e também a nossa própria humanidade.

 Os dois pintores acabam partilhando o seu infortúnio, unidos nos sentimentos de amizade que o trabalho lhes transmite, ultrapassando as contingências pessoais.

Por Adérito Lopes ter dedicado a encenação da peça ao Helder Costa, aqui fica um abraço para o renitente pintor de um mundo melhor.

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