A Humanidade sempre viveu com fantasmas e sempre viverá, não obstante andarmos à procura do caminho para o planeta Marte. Talvez os exploradores os encontrem no caminho, como os companheiros de Vasco da Gama, segundo Luís Vaz de Camões
A Humanidade tem avançado a muito custo largando ao longo do tempo práticas, conceitos, preconceitos, violências, injustiças e discriminações quer entre classes e camadas socias, quer entre géneros, quer entre os membros da própria família.
Para trás ficou a escravatura, perseguições religiosas (algumas persistem), o morgadio, a maldição da mulher, a desigualdade monárquica, a discriminação no sufrágio entre muitas outras.
Mas também ficaram preconceitos e inerentes ao sistema dominante e muitas hipocrisias que fazem de muitos seres humanos gente medíocre e injusta até nas próprias relações familiares.
A moral burguesa do século dezanove também estava impregnada de duplicidades e injustiças medonhas. Ibsen, na obra Fantasmas, urdindo o drama, acentuando ambiguidades, usando a ironia e o humor, traz para a superfície da vida as contradições e a hipocrisia dentro da família e na própria religião cristã imperante na Noruega daquele tempo.
O cenário, não obstante o sofá, é sóbrio, apesar da riqueza da dona da casa do que se depreende dos diálogos entre a proprietária e o pastor; ele mais interessado nos bens materiais e ela voando mais à larga. O pastor, cuja pastorícia devia ter lugar nas almas dos habitantes da pequena cidade, onde se desenrola a ação cénica, centra-se no vil metal.
Rita Lello dirigiu os atores e a atriz pelo caminho luminoso das dificuldades das personagens tremendamente densas, como é timbre de Ibsen. E conseguiu quer através do espaço cénico despindo-o e apostando em dois ou três elementos que pudessem definir sobretudo o caráter da senhora Helena. A rebeldia que são os livros que o pastor esconjura e o tricô em oposição à rebeldia. A densidade do ser humano está nas suas contradições. Helena é esposa que achava que devia perdoar a vida debochada do marido, mas ficamos com a ideia de que no íntimo sofredor ela não perdoou, provavelmente querendo perdoar. Não saímos seguros do que pretendia aquela mulher, mas saímos mais conhecedores da aventura humana.
Ela quer o “seu” bem para o seu filho 0svald, mas ao aperceber-se que esse “seu” bem não é o que o filho pretende, adere ao bem do filho; que por sua vez sabe que a alegria de viver que ele persegue não vai ser possível porque sofre de uma doença incurável e adapta-se apesar da sua opção de enfrentamento do status quo amolecer ao pretender Regina, sua irmã, filha de uma relação do seu pai com uma empregada e que ele desconhecia. Aqui entram as comezinhas contas humanas entre o largo horizonte de uma possível alegria de viver e o inevitável ramerrame da vida coitadinha.
Helena encerra em si a moral da altura e deixa antever uma nova moral imprecisa, fazendo-a oscilar entre o velho e esse tal novo indefinido.
Rita Lello agarra com toda a força a força de Helena. Às vezes comove-nos, outra vezes deixa-nos estarrecidos com a coragem e outra ainda petrificados pela incapacidade de se livrar da moral dominante de aquela família é expressão. Tanta versatilidade exigia um talento superlativo que a atriz demonstrou ter. Magnífica interpretação.
Em todo o esplendor é a família burguesa que é posta em crise pelas convenções, preconceitos e anátemas que sobre ela se abatem.
Fora da família estão o pastor e um biltre que se assume submisso para se colocar por cima usando a vilania para se encostar ao pastor devido ao incêndio que destruiu o orfanato que seria de Regina e que o pastor aconselhou Helena a não fazer seguro na sua lógica de homem dado ao dinheiro, sendo o pregador da salvação das almas.
O pastor, à boa maneira do invocador do santo nome de Deus em vão, é o corifeu dos situacionistas que a História e a vida confirmam. É a encarnação do caruncho interior face à representação de figura de boa índole. O biltre sabe por ladinice a que porta há de bater e o pastor não a fecha. Business.
Regina é da família sem o saber e de nariz ao alto qual perdigueira, no meio daquele mundo de hipocrisias, aprendeu a saber movimentar-se desde casar com o irmão antes de saber que era até finalmente aceitar ficar à frente de um prostíbulo que Jakob- o biltre- vai montar, tendo ela no início da ação recusado frontalmente.
Os atores e atriz que desempenham estes papeis estão ao nível das exigências de Ibsen. Souberam-nos transmitir a força, a cobardia, a bondade, as ambiguidades, as fraquezas e a hipocrisia dominante na Noruega de então.
Ibsen desvendou com mestria certas características que os humanos não revelam a olho nu; fê-lo às claras e a meia luz e na sombra do que se não diz e se vê pelo poder da palavra ou de certos silêncios mais presentes nas duas mulheres.
A encenação foi capaz de colocar em cima do palco toda essa riqueza que Ibsen congeminou. Saímos daquele Teatro mais humanos, mais retratados, mais curiosos e quiçá mais capazes de compreender os fantasmas que existirão enquanto houver vida humana. Imperdível.