DOIS BRAVOS DO PELOTÃO
Dizer algumas palavras sobre o Paulo e o Fernando seria dizer apenas duas e estava tudo dito – dois bravos. Porém, em vez destas duas escrevi 939.
Nasceram no começo da segunda guerra mundial; quando entraram na escola terminara há dois anos, passados alguns começava a guerra colonial, tinham vinte anos.
O nazi/fascismo fora derrotado, mas, em Portugal e na Espanha, cada regime à sua maneira, mantinha-se à custa do medo e do terror.
Tempos brutais, próprios para incorrigiveis resistentes. Tempo fechado dentro do tempo. Envenenado. Tempo de bravura, de ter nas mãos a força para ajudar a abrir o tempo de Abril.
E ambos pegando na candeia que alumiava o rumo assumiram a coragem de lutar.
No percurso do Fernando e do Paulo não há faltas às batalhas. Presente, disseram eles.
São da fornada de homens e de mulheres que fizeram de Portugal um palco de esperança acontecida. Derrubamos o fascismo. Acabamos com a guerra.
Trazem a alma e as mãos limpas no sentido de se terem colocado no fio da navalha e de não temer a fronteira entre a coragem e a desistência. Conhecemo-nos demasiado bem e, muitas vezes, esse facto faz-nos desvalorizar o empenho de décadas à causa da liberdade, da democracia e do socialismo de muitos que aqui estão e de outros que aqui podiam estar.
Evoco a coragem do Fernando que foi preso pelos esbirros da PIDE para sofrer 19 noites de tortura do sono. Tornou-se símbolo na resistência de então. Quando saiu de Caxias o mundo era pequeno para ele.
Não se trata de parar o tempo ou de viver como se o passado fosse presente. É preciso que a memória seja memória para que seja sempre só memória.
Sei que o tempo é de outro molde, mas sabemos todos os que estamos aqui que em política as sementeiras se colhem, mesmo que tardiamente.
O Paulo e o Fernando atravessaram metade do século passado, desde que tiveram consciência da sua cidadania e todos estes anos ao lado das lutas por um Portugal e um mundo melhores.
Militantes e dirigentes que foram do Partido Comunista Português levaram a sua força e a sua experiência e trouxeram a confiança que só aquele partido, naquele tempo histórico, podia dar.
Um, construtor da Festa do Avante desde o primeiro minuto, quando a Festa era magia, arte, e política no melhor sentido do termo; nesse tempo até os adversários gostariam de ser como nós.
Saíram do PCP para poderem continuar a ser o que sempre foram – comunistas. Não foram, tal como muitos de nós, folhas secas que o vento fez tombar. Há comunismo para além do PCP, do carreirismo, do verbalismo radicalista de uma orientação desprovida de futuro.
O Paulo na sua nobre profissão de professor, prestigiado dirigente sindical, tendo sido fundador do SPGL e da FENPROF e eleito Secretário-Geral desta última Federação e membro da Comissão Executiva da CGTP.
Mas foi mais, um homem de cultura, aliás dois homens de cultura. O Paulo poeta e ensaísta. Quantos livros apresentou o Paulo? Quando se cansará de escrever sobre livros? Quantos artigos sobre literatura escreveu? Com quantos escritores e cantores conviveu e ouviu dúvidas e complexidades acerca do refinado laboratório que é a escrita.
Há quase trinta anos membro do Conselho Nacional da Educação, traz no rasto da sua vida uma ligação à vida associativa cultural e humanista, como foi a ligação aos Bombeiros de Águeda e ao Orfeão de Águeda como Presidente da AG de ambos. Um ativismo sindical, político, humanista, recreativo e artístico.
E o Fernando, o engenheiro, à frente de espaços livreiros onde artes diversas foram acarinhadas e impulsionadas e editando livros de enorme qualidade que o situacionismo financeiro não pegava? E promovendo com o seu companheiro de armas, o Zé Tavares, não só a literatura, mas também promovendo exposições de pintura e fotografia. E abrindo o espaço a debates onde participaram dezenas de intelectuais e ativistas.
Um país cujos jornais não têm suplementos literários não é bem um país, é uma espécie de desgraça incapaz de assegurar para que os seus criadores sejam valorizados e promovidos. Em vez de promover a cultura, os media, em geral, optam pelo vulgarismo primário, convidativo a fazer dos cidadãos basbaques, meros consumidores de reallity shows.
O Fernando no seu labor de formiga, contra a corrente, foi acendendo luzes de cultura, remando contra a corrente, sem desfalecer, mesmo quando todos nós porventura nem sempre soubemos dar o devido valor.
O Paulo sempre, sempre disponível para ler e reler os trabalhos que vão pedindo e as opiniões chegam sempre a tempo. De tal modo que em termos jurídicos o costume ganhou consistência de lei. Por isso, a espera pelos livros dele, Paulo, se nos impacienta.
É difícil num tempo de basbaqueira criar cidadãos ativos comprometidos com projetos de cultura. Em volta reluz o vil metal. Vende-se o que dá na televisão. O que dá na televisão dá fama e esta é dinheiro em caixa e daí a luta pelas audiências a anestesiar os seres humanos cansados de tanta injustiça e incapazes momentaneamente de fazer do seu casulo o casulo da História e mudar o rumo da vida.
Esta geração que, no Paulo e no Fernando, saudamos aqui está para nos dizer que as coisas não são como parecem e há sempre um tempo para o tempo; o tempo da mudança virá. O nosso maior escritor, Luís de Camões, já o dizia, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, todo o mundo é composto de mudanças.
Acresce que, para além de tudo o mais, são dois excelentes amigos. Dois bravos do pelotão. Bem hajam. Esperemos pelos noventa.