Ontem, há Quarenta e Dois anos, Camarada Estrada

Era uma noite como tantas outras noites. Vestida de negro. E negra por dentro. Tinha o peso de todas as anteriores que vinham há muito roubando vidas de esperança.

Havia nesse tempo noturno estrelas de esperança que os sicários perseguiam para que nas trevas a luz nunca tivesse alento.

Nessa noite, há quarenta e dois anos, um camarada deu notícia de prisões e perigos. Devia ficar com a casa limpa. Se os sicários viessem não deveriam encontrar as searas de palavras que feriam o reino das trevas e da violência.

Era noite. Mesmo noite. Tão negra a noite. Talvez por ser a última. Mas quem o saberia? E subi ao telhado e fiquei empoleirado no escuro da noite. E ali guardei os Avantes. E fiquei à espera da desgraça e do vento que em Caxias cortava a respiração.

E logo a rádio espalhou o comunicado, mas anunciava para se ficar em casa. E veio a desconfiança. Quem seria. Golpistas? A extrema-direita? Não disseram ao que vinham. Logo veio o Valadas, camarada vizinho a perguntar se sabia quem eram os homens daquela noite. Que não sabia disse-lhe. Liguei ao Sérgio que também não sabia.

E de repente bateu-me um postal vindo dos Açores do David Lopes Ramos que estava na tropa com o Melo Antunes e o Vasco Lourenço. O coração acelerou. E nunca mais chegava a madrugada. Às tantas os militares deixaram abrir as portas à alegria antiga.

Já era manhã e tocou a campainha. Era a Zita. Disse mais ou menos isto: camarada Estrada o estar aqui assim diz o que o partido pensa da situação. Apoiamos exigindo liberdades e fim da guerra . É preciso ir para a rua apoiar e exigir a libertação dos presos políticos. Temos de pôr o partido na rua.

Todas as janelas dos vizinhos se iam abrindo e um sorriso largo e atrevido tomava –lhes o rosto.

Seria aquela a manhã da Sophia? Seria o vento que deixava de calar a desgraça e deixava-nos dizer tudo uns aos outros sem medo como dizia o poeta da Praça da Canção?

Ai que o medo iria ficar arrumado na memória e com as mãos, as simples mãos se iria fazer o futuro.

Há quarenta e dois anos a noite matou a noite antiga.

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