O Zé Raposo Não Soube Que Morreu

O Zé Raposo era surdo desde os vinte anos. Na tropa uma bazuca deixara-o surdo. Totalmente surdo.

A médica, anos mais tarde, explicou ao patrão da pedreira que o Raposo era tão surdo que se ele entrasse numa discoteca com a música de animação no máximo, o ouvido dele não ouviria nada. Como se estivesse no céu. Silêncio absoluto. Ao que dizem do céu.

Era um rapaz divertido. Hasteava no quotidiano um sorriso a condizer com o verde dos olhos.

Diziam os que caçavam com ele que tinha uma vista que substituía o ouvido. Diziam os caçadores.

Tinha uma queda muito grande para as pedreiras. Gostava do ambiente da pedreira. Onde os outros tinham receio ele dava nas vistas. Fosse a colocar fogo, fosse a descer aos fundos da pedreira com a água sem se saber até que nível, fosse no que fosse nos modos mais difíceis de lidar dentro daquelas entranhas arrancadas à desventrada terra. Interessava-lhe o interior da terra e a arte de lá tirar o precioso mármore.

Vivia para a pedreira. Por lá andava como o rei das pedras, embora no bolso tivesse seiscentos e cinquenta euros a cada fim do mês.

O patrão gostava dele. Se o mandasse embora onde haveria de ganhar a vida? Tinha três filhas e seis netos. Nenhuma estava empregada, nem o genro; as outras eram mães solteiras. Viviam em casa do Raposo.

Ontem o Raposo estava a almoçar sentado, devido ao calor, à sombra de um velho e altíssimo plátano. Deviam ser doze e quaisquer minutos mais, pois começara a atirar-se ao que a mulher lhe pusera na lancheira.

Sem se saber porquê uma poderosa máquina de escavar destravou-se e rolou incontrolável. Um companheiro correu em sua direção berrando para se desviar.

O médico legista teve dificuldade em fazer a autópsia. Mas não em determinar a causa da morte.

Na aldeia os que trabalham nas pedreiras, hoje muito poucos, juntam-se e amaldiçoam as pedreiras, o fundão na terra que ao Raposo fez perder a cabeça. E ao cabo destes anos a vida.

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