Isolar, atomizar, anestesiar.

Arlindo Cunha num interessante texto publicado neste jornal   Admirável Mundo Novo | Opinião | PÚBLICO analisa alguns comportamentos dos humanos no mundo de hoje a propósito do livro de Aldous Huxley.

Huxley cria que as novas tecnologias iriam formatar os humanos e fazê-los perder a sua individualidade, funcionando como peças de uma engrenagem hierarquizada. Não sucedeu, embora a sua reflexão dê muito que pensar.

O humano é um bicho inteligente, flexível, sensível, capaz dos maiores feitos e de brutais maldades criminosas. Num outro plano, como bem descreve Arlindo Cunha, é mais dado a ser levado por “… uma situação onde a liberdade não nos é retirada por terceiros, mas trocada voluntariamente por conveniência e prazer…”

No ponto atual do nosso viver há como que um choque invisível entre o indivíduo e a comunidade onde se insere. O neoliberalismo veio atomizar os seres humanos, fazer deles peças soltas ao deus-dará. Só há indivíduos. A sociedade é uma invenção, dizia a Sra. Tatcher. O que ela proclamava no final do século passado ganhou o universo dos humanos. Cada um sabe de si, se é que sabe. O mundo sou eu e as minhas ocupações. Uma infinidade de ocupações centradas em si mesmo. O outro só existe, se for como eu. O ponto de contacto é a “tribo”, mas para logo se aconchegar no ego gigante.  

Esta realidade foi engendrada na medida em que a vida em comunidade foi sendo estilhaçada, tornando a esperança no destino comum um sonho perdido, pelo menos por ora.

A democracia foi sangrada por dentro face à sementeira de austeridade e de empobrecimento. Foi plantado o desânimo. Partiu-se a bússola, e a democracia precisa de participação, confiança e sentido do percurso.

As forças totalitárias compreenderam que era mais fácil conquistar os humanos com “doçura” do que com a força bruta. No pós-modernismo tudo é fofo, não há arestas. A técnica é isolar, atomizar, anestesiar e virar cada um para dentro de si.

É interessante confrontar este ponto atual com outros no nosso caminho. Nas sociedades primitivas ser esquimó inuit era ser humano. Para os esquimós Toutches ser humano era ser toutche. Para os ianomanis da Amazónia o indivíduo conta enquanto membro do grupo. Só, não conta. Na Grécia antiga, a condenação ao ostracismo correspondia a uma pena de 10 anos de exílio, longe de Atenas.

Étienne de La Boétie no seu livro “Discurso sobre a servidão voluntária” , escrito no final do sec. XVI, regista que Ciro após conquistar a capital da Lídia, Sardes, recebeu a notícia que os lídios se tinham revoltado. Em vez de pegar em armas para os derrotar fundou bordéis, tabernas e jogos públicos, mandando pregões a anunciar a obrigatoriedade de os frequentar. Resultou em pleno, de tal ordem que a palavra latina para designar passatempo é ludi que vem de lydi. A palavra portuguesa lúdico vem daí.

 Sétimo Severo, Imperador de Roma, inaugurou as Decennallia, sumptuosas festas que criavam uma ilusão de poder e como grandes espetáculos eram concorridos por todo o povo de Roma que desse modo aplaudia o Imperador.

“…Nestas festas os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio…in “Discurso sobre a servidão voluntária”. Ainda não havia futebol.

Nada que que se compare no Dia do Trabalhador – 1º de Maio- ao dueto sublime a roçar o piroso entre Luís e Tony, em São Bento, o da porta aberta naquele dia.

O que agora é diferente por comparação com tempos antigos é a poderosa máquina tecnológica e o poder dos media no que toca a capacidade de tornar os indivíduos numa espécie de baratas a correr de fogacho em fogacho, sem a capacidade de integrar o que sucede na evolução global do mundo, como muitas vezes sucedeu, só que agora se agravou com a atomização social retirando ao indivíduo a sua razão de ser, a sociedade “… Nenhuma das faculdades superiores do homem existe a não ser para ligar a vida individual à vida da espécie…” in “Condition de L’homme moderne”, Hanna Arendt.

O ser humano traz consigo a novidade e o velho caminho por onde veio. Momentaneamente o caminho parece aproximar-se do abismo. Guerras na Ucrânia, Gaza, Iémen, Congo, Sudão e à beira do conflito na India e Paquistão e em Taiwan.

Aqui na Europa só se ouve o clamor da corrida às armas. A voz da paz está silenciosa. Os telemóveis ligados parece que nos desligam dos outros ou nos ligam apenas ao nosso minúsculo mundo. Como tudo é passageiro, os dias que hão de vir, talvez nos deem mais esperança. É preciso pensar. Ouvir a canção de Paco Ibañez, Palavras para Júlia …Un hombre solo, una mujer, así tomados, de uno en uno, son como polvo, no son nada… poema de José Austin Gyosolo. Não haverá o admirável mundo novo sem os outros.

2 pensamentos sobre “Isolar, atomizar, anestesiar.

  1. steadybravelya21dd15058's avatar steadybravelya21dd15058

    Muito bom
    Envio um complemento uma crónica do Miguel Cardoso, no Jornal do Fundão de 1/5/25, onde ironiza sobre o mesmo tema a partir das “ilusões” de Kant
    ab

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