Um espanhol de Salamanca (Michel Gasco), um iraniano (Mohammad Miraghazadeh) e um afegão Ramin Ahmadi do grupo Badieh atuaram no auditório da Gulbenkian no dia 4 de maio.
Platão acreditava que a música era um modo de educar os cidadãos a serem melhores e a elevarem-se do cinzentismo do quotidiano. Na esteira de Pitágoras, via a inspiração como um esforço racional, contrariando a ideia vigente de que provinha da proteção das divindades.
Há mais de dois mil anos defendia a educação dos cidadãos pela música. Os fascistas clericais no poder, em Kabul, proibiram a música.
A música perturba o silêncio dos cemitérios dos talibans. Aliás, tudo os perturba. O ruído dos sapatos de uma mulher; o próprio rosto das mulheres.
Têm muito medo, designadamente da sua condição humana. Tudo o que é humano lhes mete medo. Esse medo leva-os à cruel e impiedosa desumanidade. Têm de impor a tristeza e a maldade.
Como podem suportar a alegria de uma canção popular que nos faz imaginar uma caravana de cavalos ou camelos nas estepes entre o Irão e o Afeganistão?
Ou o ritmo alucinante das tabla do afegão Raman Ahmadi numa estepe de cavalos loucos de tanto azul e tanto sol?
Ele dedicou uma das músicas ao povo que não pode ouvir músicas sob pena de açoites.
A voz de Mohammad, a certa altura, suspende-se na vastidão da estepe e Michel no seu alaúde- Rubab- segura-a no alto até ela descer aos nossos corações e sorrirmos para dentro. Adivinha-se nos vizinhos das cadeiras. Como uma libertação.
Emana daquela música o desafio do nosso caminhar como ocorre quando ouvimos flamenco. Alguém que enfrenta algo. Parece que a palavra flamenco resulta da aglutinação de duas palavras árabes, felah, camponês e mengu, em fuga, in Lutas da Miséria de José Paulo Leitão. Talvez uma fuga para o desconhecido, como o povo cigano.
A alegria toma a configuração da chegada de uma caravana ao caravançarai para descanso de tanto caminhar, nessa Rota a levar e a trazer que os nossos Descobrimentos fizeram sucumbir .
Tanto ritmo, tanta alegria, tanta vida que fazem os talibans tremer de medo. Impõem aos compatriotas de Ahmadi o silêncio dos cemitérios. Tal como Neruda escreveu que os ditadores podiam arrancar as flores, mas não podiam deter a primavera; em Kabul podem proibir a música mas não podem impedir os pássaros de cantar, nem os humanos com as suas cordas vocais de os imitar. O bando fascista que tomou o poder derrubando ilegalmente Allende, com medo da guitarra de Victor Jara, cortou-lhe as mãos. Mas a música resistiu e resiste.
No grande auditório da Gulbenkian algo de sublime aconteceu no sábado, 4 de maio de 2024. Platão e Pitágoras tinham razão. Durante uma hora com a música dos Badieh andei com as caravanas da Terra do Sol – Khorasan e com aqueles povos na tristeza e na alegria. Que bom.