A esquizofrenia da guerra.
Cada geração vive a seu modo o seu tempo. Tive a suprema felicidade de participar vitoriosamente na luta pelo derrube da ditadura fascista e de assistir à vitória dos povos submetidos ao colonialismo português; assisti a mudanças quase inimagináveis no mundo, a implosão do socialismo na URSS e logo de seguida a libertação de um gigante que deu pelo nome de Mandela.
Outros acontecimentos de um significado relevante foram destruindo o velho mundo e criando bases de um novo onde paradoxalmente a força está a ser o único critério para avaliar as condutas, tal como aconteceu na guerra da Jugoslávia, na invasão do Iraque, na destruição do Iémen e agora a invasão da Ucrânia.
Vivi o sonho e vivo o pesadelo de um mundo que ganha as novas gerações para a ideia da competição à outrance, como se em substituição do homo sapiens fosse gerado o homo demens na linguagem clarividente de Edgar Morin.
Um mundo quase esquizofrénico tão assustador cujos governos aplaudiram a invasão do Iraque e agora se levantam em armas contra a invasão da Rússia para proteger um governo de corruptos a começar no seu Presidente apanhado nos Panama Papers e a acabar numa entourage de oligarcas oriundos da mesma cepa que domina em Moscovo.
Um mundo incapaz de dar comida e água a mais de metade do mundo e em que um por cento das pessoas têm quase metade de todos os rendimentos do Planeta. É este o mundo que o chefe do Vaticano denuncia no livro Fratelli Tutti, mas que os crentes católicos deitam os olhos ao chão e fazem de conta que não veem e não ouvem.
Não é decifrável para onde caminhamos com a invasão da Ucrânia, a escalada suicida decorrente da estúpida necessidade da Ucrânia/OTAN e Rússia de afirmarem que irão vencer o conflito.
O homo sapiens afirma-se como homo demens na feliz expressão de Edgar Morin. Sem dúvida, o mundo encontra-se à beira de um abismo a todos os níveis e que a falta de coragem para enfrentar o desafio faz com que a Humanidade anda a toque de caixa de um conjunto de dirigentes alheios ao destino dos humanos e do próprio Planeta.
No novo milénio, onde estamos, a força não pode ser o critério para regular as relações entre Estados e nações.
Não se pode aceitar a invasão iraquiana e ao mesmo tempo desencadear um conjunto brutal de sanções conta a Rússia que por sua vez estão a transformar a vida dos que trabalhadores num inferno devido ao aumento do preço dos combustíveis, eletricidade e gás.
Não se pode aceitar a anexação dos Montes Golan da Síria e repudiar a anexação dos territórios ucranianos de larga maioria russófonos. O direito internacional não é uma linha que se torce em função dos interesses de cada um, ou seja, os crimes do imperialismo dos EUA/OTAN são para apoiar e os da Rússia são para escalar até à beira de uma guerra mundial.
A UE e os EUA não estão a combater pela democracia na Ucrânia pela simples razão de a Ucrânia não cumpre os requisitos de um regime democrático, sendo os seus oligarcas tão corruptos como os da Rússia.
O que o imperialismo estadunidense aliado ao imperialismo europeu estão a fazer é aproveitar a invasão russa para tentar derrotar a Rússia e apoderar-se das riquezas da Eurásia, região decisiva para o futuro mundial.
A invasão da Ucrânia insere-se numa resposta imperialista a ou outro tipo de política imperialista conduzida pelos EUA/OTAN para o domínio dos países que antes faziam parte da URSS fazendo-os entrar na sua área de influência, mesmo contrariando os acordos celebrados aquando da implosão da URSS.
O que espanta é a quase total ausência de vozes (exceção feita ao Papa Francisco) para lançar propostas no sentido de encontrar uma solução política que permita à Ucrânia, à Rússia e ao conjunto da Europa encontrar políticas de segurança que satisfaçam a todas as nações e povos do continente. Já não há na Europa quem se atenha à defesa da paz? Os que defendem a paz rendem-se à propaganda de guerra dos que afirmam que vão vencer porque a Rússia não tem combustível para os tanques ou armas capazes de se baterem com as da OTAN? Ou são incapazes comparados com aqueles que fugiram a sete pés do Afeganistão não há muito tempo?
A UE pode prescindir do gás russo, mas vai ter de o ir buscar a algum sítio, perde a UE e a Rússia e fácil é ver o quanto ganham os EUA.
A ideia defendida por Biden e os vassalos da UE de que a solução para o conflito é militar é próprio de gente irresponsável a raiar o homo demens, a decadência de uma civilização incapazes de encarar o futuro onde todos os povos possam coexistir com as suas aspirações próprias que não têm de ser as mesmas, pois a Humanidade será sempre diversa sob pena de perecer.
Não se pode aceitar a invasão da Ucrânia, que tem de ser condenada. Uma vez que aconteceu ou se negoceia uma solução ou se escala a guerra (que neste momento é cada vez mais uma guerra da OTAN com os ucranianos a servirem de carne para canhão) para patamares cada vez mais elevados e que a continuarem nestes moldes acabarão por envolver a Europa direta ou indiretamente e a forte possibilidade de utilização de armamento nuclear tático, o que será o passo diabólico para outro patamar.
Cada um deve assumir as responsabilidades e responder a esta questão: já não é possível uma solução política ou ainda é?
Isto significa que cada governo em vez de seguir o capataz da manada deve pensar pela sua própria cabeça e saber se o melhor para cada país europeu é uma solução pacífica, mesmo não sendo a melhor e eventualmente mais justa ou escorregar para o abismo?
O que a Humanidade tem de melhor- jovens, mulheres e homens lúcidos e justos- não se devem deixar encurralar na lógica de guerra e ficar atrelado a esse carro; é preciso que a justiça encaixe na racionalidade e se assuma que um acordo é mil vezes melhor que uma vitória sobre escombros de um conjunto de países ou continente(s).
E a defesa deste ponto de vista não visa absolver a condenação da brutalidade da invasão russa; visa antes de tudo que não entremos por um túnel de onde já seja impossível sair.
Aos que apregoam a vitória seja de um lado, seja de outro, a melhor arma é a não entrar nessa escalada e antes que seja tarde e permitir ao cabo destas dezenas de milhares de anos que o homo demens prevaleça sobre o homo sapiens que um pouco por toda a Europa está a levantar a cabeça e a ressuscitar os diabólicos propósitos do fascismo.