A entrevista de Marcelo Rebelo de Sousa, conduzida por Maria João Avilez no P2 deste jornal de 11/07/2021, tem o seu quê de surpreendente num primeiro momento da leitura. A pergunta pode resumir-se a esta questão muito simples: o que pretendeu MRS passar para a vida política com a entrevista sobre António Guterres?
MRS não dá ponto sem nó. “Ajudado” por M. J. Avilez o entrevistado traz para a superfície a ligação umbilical entre ambos. No fio condutor da sua memória ele vai buscar, em grande medida, as origens dessa irmandade à fé católica.
O relevo da fé é de tal ordem que os apresenta (com ou sem mandato de Guterres- não revela) unidíssimos nesse desiderato, sem em momento algum, apesar da extensão, referir qualquer expressão desse ensejo de luta pela liberdade contra a ditadura.
Com ou sem consciência, MRS fala de Guterres como uma espécie de irmão gémeo quase nascidos da mesma criatura – a fé. A partir dessa irmandade é sugerida de modo subliminar a divisão do país num pequeno Tratado de Tordesilhas em que o centro-direita era para MRS e o centro-esquerda para AG.
De elogio em elogio (é relativamente comum em termos familiares) MRS revela algo de verdadeiramente original no percurso de ambos – tinham três coisas em comum-queriam a democratização do país, a descolonização e a entrada na CEE.
Julgo que é a primeira vez que este passado é assim assumido, tanto mais quanto não são conhecidos quaisquer escritos de MRS sobre a importância da democracia versus ditadura de Salazar/Caetano, muito menos contra a guerra colonial e mesmo até no que concerne à CEE.
Pelos meandros de uma memória bem escolhida, MRS vai dando passos sempre no sentido de apagar todas as diferenças entre ambos. E num lance de génio, de autêntico hierofante revela o lado totalmente desconhecido da vida de AG – a sua imensa solidão no PS, tendo levado para aquele partido a sua posição de católico, sempre tendo em conta a pouca presença católica no PS.
MRS ficou tristíssimo com a decisão, mas rapidamente compreendeu a importância da adesão de AG ao PS. E, apesar disso, e mesmo quando era líder da oposição, nunca deixou de coordenar com AG a ação entre ambos.
Fica-se a saber que no período em que a Alemanha era liderada por Helmut Kohl, ambos ficavam em Bruxelas, no mesmo hotel, em extremidade opostas, e a meio da noite lá iam coordenar as suas coisas.
MRS revela que AG falhou como primeiro-ministro porque era uma personalidade que não precisava da política e quando viu o que era o pântano foi-se para não se sentir “tolhido”
Não se sabe e provavelmente não se saberá o que AG pensa destas “revelações” entusiasmadas de MRS; num momento em que por todo o lado são acentuados os pontos de divergência entre MRS e António Costa, mesmo quando ambos o negam.
Na verdade, apesar de muitas convergências do PS com o PSD em questões tão sensíveis como as leis laborais, são vários os anúncios de Costa a dar conta que não haverá acordo com o PSD.
Para a História talvez fique a quase certeza de muito provavelmente Rio nada ter a dizer sobre hotéis em que a meio da noite tenham ido coordenar a ação política.
É bem verdade que Costa fez tudo para MRS ser eleito. Porém, também é verdade que este é o último mandato de MRS e com o frenesim de ativismo em que está envolvido, dia e noite, talvez sofra de nostalgia pelos tempos tão magnificamente centristas. Admite-se que esta pulsão o leve a este eixo que percorre a entrevista. MRS nunca deixa de nos espantar. É de prever pavores de quem com ele partilhou o passado.
Fica na entrevista revelada a vontade do autodesignado “irmão” de AG. Que a paz reine entre os homens de boa vontade e de desígnios escondidos.
A revelação do centrão em todo o seu esplendor | Opinião | PÚBLICO (publico.pt)