Domingos Lopes, Nas Margens do Medo, Âncora Editora, 2018
Entre a Vida e a Morte
Paulo Sucena
Considero legítimo qualificar Nas Margens Do Medo como um romance rural, tendo em conta o contexto em que decorre, uma aldeia alentejana, Capelins, situada perto do Guadiana, num tempo que se estende pelos finais da década de 1930 até um ano que o narrador não revela mas que o discurso permite situar, no mínimo, nos finais da década de 1940, abordando uma temática que essencialmente se prende com a situação de fome e de trabalho precário e mal remunerado dos trabalhadores rurais do concelho de Alandroal. É a partir deste tópico que a narrativa se vai estruturar e enriquecer nos seus diversos segmentos de que avultam as jornadas do contrabando.
A ascendência deste romance não provém tanto de Júlio Dinis em que os/as protagonistas estão acima da comunidade rural pela sua origem familiar, pela sua cultura e riqueza de linguagem, mas mais de Fialho de Almeida e do modo como o excelente contista aborda a violência do trabalho dos ceifeiros alentejanos. De Aquilino Ribeiro herdou o narrador a atenção e cuidado que dispensa à expressão da fala das personagens de Nas Margens Do Medo, desde o vocabulário à organização morfo-sintáctica das frases, distanciando-se, todavia, de Aquilino quando, em vez de se colocar num nível superior de linguagem, aproxima o seu discurso do das personagens com o intuito de tornar mais coesa e fluente a matéria que pretende comunicar.
Essa comunicação faz-se deliberadamente sem sinais ou símbolos de natureza ideológica. O romance não está estruturado em função de uma progressiva tomada de consciência da classe trabalhadora conducente a uma revolta, colectivamente organizada, contra as forças opressoras. Nem tão pouco, Nas Margens Do Medo, ao contrário da corrente neo-realista, é construído sob a influência do pensamento marxista nem as suas páginas são percorridas por um sopro lírico capaz de abrir janelas de esperança para um horizonte onde já se divisassem dias felizes. Pelo contrário, a história e as personagens não rompem a desolação de uma aldeia parada num tempo parado, como era, aliás, a esmagadora maioria do Portugal rural daquela época. As inquietações e a turbulência dos actores não saem das fronteiras de suas mentes conservadoras que só vemos verdadeiramente indignarem-se e barafustarem perante um caso insólito que alguém descobriu e rapidamente difundiu: a vida em concubinato de Lurdes e Manolo que meia dúzia de anos antes um contrabandista português encontrou em Olivença, era ele ainda um rapazote, sem pai nem mãe, assassinados pelas tropas de Franco, e trouxe para Capelins onde no dia da chegada foi “adoptado” por aquela jovem de vinte anos, dona de uma venda que herdara dos pais.
Esta é a situação nuclear da qual o romance arranca num tempo em que a Espanha Republicana era sacudida pela brutalidade de uma guerra civil e em Portugal se vivia sob uma ditadura feroz cujo sinal de maior desumanidade e violência provinha do Campo de Concentração do Tarrafal, cemitério de dezenas de democratas deixados morrer sem assistência médica e sem dó nem piedade. Acabei há pouco de escrever uma das palavras que melhor definem esta narrativa, violência. Na verdade, a violência percorre intensamente esta obra de Domingos Lopes. Violência da guerra; violência do regime salazarista; violência da GNR, da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e violência da PIDE; violência dos senhores da terra; violência doméstica; violência da fome e do desemprego; violência do trabalho nos campos e nas pedreiras; violência do sol e da chuva; violência da vida de contrabandista. É neste contexto profundamente disfórico que se movimentam as personagens de Nas Margens Do Medo, cuja acção se confina a parâmetros fortemente individualistas, com uma ou outra excepção. Seja a revolta dos ceifeiros que Zé Inácio protagonizou e que a pouco e pouco e de forma avulsa vai ganhando a adesão dos companheiros que reivindicavam condições de trabalho menos penosas. Seja a mobilização de toda a gente para combater um fogo que ameaçava a casa do Felisberto, sujeito que gozava de pouca simpatia na aldeia. Seja, na parte final do romance, a greve dos ceifeiros que desencadeou uma onde de forte repressão e várias prisões e fugas dos grevistas.
Não é, portanto, este um romance em que os trabalhadores protagonizam uma gesta colectiva, antes, pelo contrário, estamos perante uma história cujas unidades narrativas se circunscrevem a acontecimentos que se iniciam e terminam na esfera de acção das personagens, apresentando-se assim o romance como um mosaico de “experiências vividas”, usando palavras de Edmund Husserl, ou, se preferirem uma expressão mais tardia do filósofo alemão, como o mundo da vida (Lebenswelt) que sublinha melhor o carácter unitário e sintético do romance como uma totalidade.
Dessas experiências vividas destacam-se as de Lurdes e Manolo pelo peso psicológico e social que sobre ambos a sociedade fez pender e também a de João Comprido, oriundo de uma família muito pobre em que o pai alcoólico batia frequentemente na mulher até que o filho lhe fez frente e ele o expulsou de casa, lançando-o numa vida de extrema precariedade até ao dia em que Manolo o contrata e posteriormente convida para fazer par com ele na prática do contrabando.
Tendo em conta que o contrabando é um dos eixos fundamentais da história é necessário ressaltar o papel de Zé Fino que um dia traz dois miúdos, filhos de pais comunistas assassinados, para esconder em Portugal e que a GNR prendeu e torturou barbaramente num posto do Alandroal sem que Fino tivesse confessado o acto de que era acusado. E também a relevância do trabalho de Manuel Perleques que do seu moinho prestava auxílio aos homens do contrabando.
Acima destes ergue-se a figura de Cobra, o maestro de toda aquela actividade ilegal, que nos surge como um personagem destinador da vida e da morte. É ele que subtrai Manolo aos horrores da Guerra Civil e o traz para Portugal e para uma vida feliz ainda que mais tarde arriscada e percorrida, em alguns momentos, por uma soturna melancolia. É ele que ao confiar Manolo a Lurdes transforma os dias pardacentos que ela vivia em dias luminosos cujo acme é a concretização, anos mais tarde, de um secreto e sofrido amor por Manolo que nela foi crescendo quando o “filho adotivo” atingiu a juventude. Mas é o Cobra que também destina Manolo à morte ao pedir-lhe para passar para Espanha alguns portugueses fugidos à repressão da ditadura, sendo portanto ele que, indiretamente, leva Lurdes ao suicídio.
Será oportuno lembrar que como contraponto à disforia que perpassa pelas páginas deste romance apenas nos surgem alguns, poucos, momentos de euforia. Aqueles em que os intervenientes gozam os sabores de comedorias dignas do arroz de favas queirosiano e os que os fregueses da taberna da Lurdes desfrutavam nos quentes convívios em que o vinho oferecia aos bebedores tarde jubilosas. O vinho tem, aliás, uma presença quase tão constante como nos poemas de Omar Khayyam, ganhando mesmo um tonalidade, de alguma modo, evangélica. Cito Frei Bento Domingues:”Nas Bodas de Caná, a transformação de água em vinho é considerada o primeiro signo da novidade absoluta do Novo Testamento: Cristo surge como aquele que não pode com a tristeza do mundo. Mesmo nas situações mais desesperadas é preciso tudo fazer para que haja uma embriaguez de alegria.”
Direi, a terminar, que não sendo este um romance de teor revolucionário dele transcorre, de um modo implícito, a condenação da exploração dos trabalhadores, a opressão política, a violência das forças repressivas e ainda nele encontramos gente, no cairel do medo, a levantar-se do chão. Confesso que no fim da sua leitura me ficou a ressoar sob os olhos uma toada de amor e de morte, por isso algo me diz que nas margens do Guadiana se ouve o choro inúmero das águas lamentando a morte de dois amantes.
02/12/2018