De tantos dias foram feitos quarenta e oito anos sob a ditadura, que aqueles que os viveram, talvez pensassem que as suas vidas assim tivessem de ser vividas, e que nada rasgaria o véu da desgraça que cobria Portugal e as colónias.
Foram tantas as esperanças adiadas, ao longo de quase meio século, que parecia nada poder fazer frente com êxito ao poder da ditadura. Milhares e milhares de homens, mulheres e jovens morreram sem terem alguma vez respirado o ar puro da liberdade e sem terem participado na vida política de modo livre, como hoje todos podemos fazer, independentemente de limitações e constrangimentos.
Sempre o adiamento de uma esperança, que se renovava noutra nascente que os persistentes descobriam nos confins dos sonhos a martelar o futuro.
Um país desoladamente cheio de gente pobre com uns quantos senhores no mando e sob vigilância do cruel ditador que se fazia passar por uma espécie de pai da nação e que açulava os cães das várias polícias, sobretudo a da PIDE, a quem ousasse ter voz num país que pretendia castrar a voz e a alma.
O homem de Santa Comba Dão que defendia o esplendor de Portugal do Minho a Timor-Leste, um Império de portugueses, arengava que éramos pobrezinhos, mas alegres e que um copo de vinho e uma casinha caiada de branco bastava para se ser feliz. Tantas terras, tantos mares, tantas riquezas, tantas maravilhas para se ser feliz, condenados a ser pobretes e alegretes como pretendia António Oliveira Salazar, o ditador.
Aliás, numa das lições dos livros da escola primária, salvo erro da terceira classe, o texto dava nota de uma menina, Joaninha, toda contente que abria a porta a um pobrezinho para dar esmola ao coitadinho, e assim como boa cristã, graças aos pobrezinhos, podia praticar a caridade.
No regime sobressaíam os “inhos” numa tentativa de criar um clima irreal de quase sonho entre os portugueses para fazer ocultar toda dureza da vida e da política sustentada na força bruta.
O regime conseguiu fazer passar a ideia de que dada a sua natureza era impossível mudá-lo e, portanto, o caminho era submeterem-se aos desígnios de Salazar, o tal pai da Nação e, como tal, tinha de saber castigar os filhos recalcitrantes a bem da nação. Coitadinho, obrigado a punir…para defender Portugal na União Nacional e do Minho a Timor-Leste.
Os africanos nascidos nas colónias eram portugueses com a bênção da Igreja, mas o cardeal Cerejeira considerava os negros símios no livro que escreveu sobre Nicolau Cleonardo que viajou pelo Alentejo no século XVI e os considerava como raça desprezível e inferior (in Lutas da Miséria, página 183, editora Jornal do Fundão e canto redondo, José Paulo Leitão, advogado). Talvez um filho de Deus como um cardeal fosse filho de outro Deus, diferente dos outros Deuses, mesmo que, segundo a doutrina católica apostólica e romana, haja apenas um único, omnipotente, omnipresente e omnisciente.
As casas em Portugal no início dos anos 70 do século passado 53% não tinham água canalizada, 42% instalações sanitárias, 40% esgotos, 36% eletricidade.
O Ensino Superior era frequentado por cerca de oitenta mil estudantes em todo o país. Em 2023 eram 446.028.
Havia, em todo o país, em 1973, 25,7% de analfabetos e atualmente a taxa é de 3,1% (dados in Portadata)
Nos anos 80 do século passado ainda havia ovelhas a pastar perto do aeroporto de Lisboa.
Uma viagem de carro do Porto a Lisboa por ocasião do Natal chegava a Leira e entrava numa fila compacta até Lisboa…
Portugal era um país cuja grandeza enaltecida pelo regime ditatorial se referia ao passado, constituindo o presente sob o mando de Salazar o permanente elogio da pobreza honrada, isto é, portugueses pobres, mas honrados.
Nesse longo período, quase meio século, Portugal era um país enclausurado, não só porque o regime era rejeitado na Europa, como no plano mundial.
O colonialismo e mais tarde a guerra colonial isolou Portugal, desprestigiando-o em todos os areópagos internacionais. Portugal era desconhecido, sendo que os motivos pelos quais era conhecido resultavam da emigração, da ditadura de Salazar/Caetano e da guerra colonial. O isolamento era tão grande que as viagens aéreas para Angola ou Moçambique eram obrigadas a contornarem certos países que não permitiam que os aviões portugueses os cruzassem nos seus céus.
Em Portugal vivia-se mal e nas colónias muito pior. A guerra veio acrescentar maior desgraça a toda esta situação.
No início dos anos sessenta, dois fenómenos ocorreram em simultâneo, a migração do interior para a área metropolitana de Lisboa e a emigração de centenas de milhares de portugueses, designadamente para França, Alemanha, Reino Unido e outros países europeus. De Norte a Sul do país em quase todas as famílias havias migrantes e ou emigrantes.
Desde o 25 de Abril acentuou-se a tendência para a deslocação da população do interior para o litoral. Atualmente 83% da população vive no litoral, in Portadata.
Os jovens iam para a guerra; grande número de adultos emigravam. A juventude vivia numa grande aflição, a incorporação militar acarretava três a quatro anos nas Forças Armadas e a incerteza do regresso das três guerras coloniais, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
A ditadura oprimia e reprimia impondo a todo o país um reino de pobreza, o que era levado a cabo através do medo e do terror, sobretudo da polícia política, a PIDE/DGS que com o seu exército de informadores espalhados no país e nas colónias tentava impedir qualquer movimento democrático de oposição ao regime fascista.
A juventude enfrentava um duplo desafio: ficar e ir para a guerra a milhares de quilómetros em África ou desertar.
A Juventude universitária sentia a situação dramática em que se encontrava e procurava saídas.
Os pesadelos faziam parte do quotidiano de um jovem estudante universitário.
Era moldado, em geral, para “não dar cabo da vida”, o que significava aceitar que ditadura era “eterna” e que qualquer luta estava condenada ao fracasso exatamente pela força bruta conjugada da opressão e da repressão.
Os media censurados pelo lápis azul controlavam as notícias e o povo só podia ter acesso ao que o regime permitia. Portugal era um país cercado e controlado encostado ao passado e sem vista para a modernidade.
Os pais, na sua maioria, educavam os filhos a serem submissos, pois de nada adiantava ter razão contra um poder tão brutal. “Tens Razão”, mas que vais tu mudar? Essa era a ideia que Salazar conseguiu inculcar na mente dos portugueses. Essa foi a sua vitória, pois morreu sem ser responsabilizado por tantos crimes cometidos no continente e nas colónias.
Se tivermos em atenção que a Inquisição vigorou em Portugal entre 1536 e 1821 por via da delação e do terror da tortura e da fogueira, o espírito dos portugueses foi também moldado por estas circunstâncias de séculos.
Basta pensar que nos dias dos Autos de Fé em Lisboa a Inquisição tudo fazia para ter milhares de espectadores” …Ávidos por garantir a presença de uma vasta multidão de espectadores e evitar concorrência, os inquisidores de Lisboa emitiam uma declaração pública que proibia os outros clérigos de pregar sermões no mesmo dia. Além disso informaram os habitantes de os “Sumos Pontífices têm concedido muitas graças e indulgências às pessoas que assistem a semelhantes atos…”in A hermafrodita e a Inquisição portuguesa, de François Soyer, Editora Bertrand, pag.188.
Isto durante trezentos anos. Não só incentivando a delação, como promovendo a participação “desfrutando” dos tormentos horríveis dos condenados. Seguramente que esta prática contribuiu para produzir um certo tipo de personalidade.
Nas pequenas cidades e vilas do país, onde a presença dos poderes reais se faziam sentir a vida estava manietada e esperava-se pelo emprego, pela ida à tropa, pelo casamento e pelos filhos, tudo numa sequência sem qualquer chama.
O partido no poder (só era permitido o partido de Salazar, a União Nacional) mandava através das suas múltiplas redes de influência, onde nenhuma decisão era escrutinada. Fizessem o que fizessem a censura impedia que se soubesse.
Este era o Portugal salazarento, pardacento, pobre e sem futuro que não fosse o da pobreza e o de inculcar nos cidadãos o fazer de conta para não cair nas garras da PIDE. Esta polícia garantia que nada acontecia. Para tanto a repressão tinha de ser exemplar e dissuadir os oposicionistas.
A convergência do regime com a Igreja oficial constitui um dueto em que sustentou a ditadura durante 48 anos. Salazar e o Cardeal Cerejeira eram os dois rostos mais proeminentes da ditadura.
Salazar e o seu regime conseguiu durante quase cinquenta anos controlar o país oferecendo-lhe ordem e pobreza. Dá que pensar sobre como somos.
COIMBRA- República Ninho dos Matulões
Tanto quanto consegui apurar na aldeia em que nasci, Amorim, concelho da Póvoa de Varzim, só havia notícia de um dos homens mais ricos da freguesia, ter tido dois filhos que foram estudar para a Universidade de Coimbra, um para Letras e outro para Medicina.
Era na altura, anos 60 do século passado, uma aldeia de gente pobre e remediada e duas ou três famílias com mais posses.
A maioria das famílias passava mal, quer em termos de acesso a alimentação, quer em termos de conforto caseiro. Meia dúzia de casas teriam eletricidade, saneamento e acesso a água da rede pública. Havia retretes, poços ou a fonte onde se ia à água e se lavava a roupa.
O chão das casas era térreo. Graças à emigração as coisas foram mudando. Todos tinham familiares em França que iam de assalto, pagando a um ou dois passadores até França. Lembro-me de um vizinho que tinha o contacto com a rede de passadores e de parte dos meus tios terem ido de assalto para França a fim de poderem ter uma vida mais ou menos decente. Um dia veio a PIDE e prendeu o vizinho.
Acontecia a muitos emigrantes mudarem os lençóis duas ou três vezes por ano. Era nos famosos bairros de lata que a maioria dos emigrantes portugueses vivia. A vontade de juntar um pecúlio era tão forte que a fixação era no regresso e poder ter outra vida.
Por sorte, embora o meu pai e a minha mãe não fossem ricos, seriam remediados, o meu pai tinha o sonho de ter um filho ou filha doutor(a), melhor, licenciado, o que num país empacotado em provincianices equivalia a ser doutor(a).
Lá fui eu para a Faculdade de Direito de Coimbra para a República onde tinham estado os acima referidos estudantes universitários. Ficava mais em conta, cerca de quinhentos a seiscentos escudos, dois euros e meio a três na “nossa” moeda atual.
O meu pai foi levar-me a Coimbra de carro – nessa altura os cento e cinquenta quilómetros levavam 4 horas a percorrer, como se fosse uma longa viagem – e insistiu em três questões fundamentais para eu conseguir acabar o curso de Direito:
– Não me meter em políticas nem discutir política, seria a minha desgraça.
– Não discutir religião, era católico e seria o bastante para ter a proteção divina de que iria precisar.
– Não namorar, pois o namoro impedir-me-ia de concentrar no curso.
E lá fui eu para fora do ninho e para entrar no Ninho dos Matulões, República de estudantes com tradições na Póvoa de Varzim, Leiria, Caldas da Rainha e Alcobaça.
Onde eu entrei…
Em 1967 a Associação Académica de Coimbra estava encerrada pelo governo devido à crise académica de 1965, cujo desfecho levou o governo a impor uma Comissão Administrativa, a qual não era aceite pelos estudantes que entendiam dever serem eles a eleger os corpos gerentes, como é lógico e natural.
Havendo eleições, eram eleitos estudantes que propugnavam a Reforma do Ensino e uma vida democrática dentro da Academia. Isso o governo não permitia.
Para se ter uma ideia do desprezo pela vida democrática na Academia, a lista eleita, só tomava posse se o governo a homologasse. Porém, se a lista eleita não cabia nos parâmetros governamentais, podia não ser homologada e normalmente era imposta uma comissão administrativa, o que sucedeu muitas vezes nos anos 60.
Na República Ninho dos Matulões o conjunto dos repúblicos estava comprometido com a luta pela realização de eleições na AAC e para pôr termo à comissão administrativa imposta pelo governo e a quem os estudantes não reconheciam a mínima legitimidade.
O Ninho pertencia ao núcleo duro do Secretariado do Conselho das Repúblicas que estava na linha da frente na luta pela realização de eleições para os corpos gerentes da AAC.
Fui encontrar um ambiente marcado por duas características contraditórias – por um lado, a tradição praxista da velha Coimbra universitária vivendo fechada em relação à população e, por outro lado, um movimento que, mesmo dentro da Repúblicas, as guardiãs da praxe, se manifestava contra a praxe, designadamente os seus aspetos mais retrógrados, como por exemplo rapar o cabelo aos caloiros que andassem na rua depois das 20h, algo perfeitamente medieval e abusivo. Pelo andar da carruagem, passados 50 anos ainda se reimplanta tal prática e se instala na vida académica lisboeta que por milagre acordou para a praxe nos idos anos 80/90 do sec. passado…Falta ouvir o Toni de Matos a cantar Ó tempo volta para trás.
Foi uma surpresa do tamanho do mundo chegar com as diretivas familiares bem presentes e entrar num antro onde se discutia política a todo o tempo e a religião era tema constante a partir do existencialismo e do marxismo.
Ser estudante universitário, segundo os mais velhos, implicava estudar, mas também compromisso com o país, com o exercício das liberdades de reunião e associação que tinham sido cortadas, tal como no país.
Depois havia a guerra colonial, nada a justificava. Era injusta e apenas servia para destruir vidas, as dos portugueses e as dos guerrilheiros.
Abria-se um novo mundo. Havia muitas reuniões. Umas para recolha de abaixo-assinados para recolha de assinaturas a exigir eleições. Outras para encontrar o candidato para delegado de curso do 1ªano contra o candidato oficial. Outras ainda para organizar a marcha noturna da Tomada da Bastilha que devia ser consagrada à luta por eleições na AAC.
Como em todas as iniciações, os ambientes envolventes têm uma importância e um impacte grande na adesão dos que se aproximam pela primeira vez.
Espantou-me o grau de seriedade e de conhecimento dos que fui encontrar nas circunstâncias existentes na Academia. Algo que não imaginara. Em todo o “movimento” havia um sentido de responsabilidade, pois era claro que do outro lado estava o implacável regime.
A marcha noturna silenciosa com archotes a reclamar eleições em absoluto silêncio com milhares de estudantes constituiu para mim algo quase transcendental. Um jovem provinciano educado na submissão com a sua capa e batina a desafiar o poder era fascinante.
Aquilo era o que corria no sangue rebelde da juventude. Além do mais, bem organizado, sem palavras de ordem, apenas a afirmação de uma vontade clara e inequívoca que o Conselho das Repúblicas transmitia às autoridades: tem de haver eleições e acabar com o reinado da comissão administrativa.
Numa reunião numa das Repúblicas, salvo erro no Bota – Abaixo, onde era também caloiro o Mário Brasileiro, houve, para minha grande surpresa, quem indicasse o meu nome para candidato a delegado decurso do 1ªano de Direito.
Em pouco mais de um mês, tudo o que constituía o pressuposto do acordo familiar para ir estudar Direito, ia por água abaixo.
Esta singularidade, de certo modo, é demonstrativa do isolamento do regime fascista. Já não bastavam as “imposições” familiares. O regime estava tão isolado, tão incapaz de responder aos problemas da juventude, agravados com a guerra colonial, que perdia em toda a linha no confronto quotidiano nas Universidades.
O regime mostrava-se incapaz, mesmo com a repressão, de reproduzir os quadros que necessitava para se prolongar. A guerra colonial estava a agudizar de uma forma extrema as contradições dentro do próprio regime com entre o regime e a população.
Seguramente que a maioria dos estudantes pretendia tirar o curso, casar, ter filhos e ser feliz… Só que. entre o regime e as propostas de ativistas do movimento associativo, a maioria caía para o lado dos dirigentes estudantis, seguindo as suas propostas, mesmo que à custa de certos sacrifícios pessoais ou familiares, como foi o caso da greve aos exames que causou o chumbo a milhares de estudantes em 1969, após ter sido votado em Assembleia-Geral a greve aos exames.
O país virara as costas ao regime. Aguentava-o. Não queria, mas tinha medo, como tantas vezes na História.
Fui eleito para delegado de curso e passei, ipso facto, a pertencer à junta de delegados e o ano 67/68 foi o da preparação das eleições que vieram a ter lugar em 1969, ganhando por uma maioria esmagadora a lista proposta pelo Conselho das Repúblicas.
A vitória desta lista inseria-se no movimento global do fim dos nos sessenta que tivera o seu apogeu no Maio de 68 e nas revoltas estudantis estadunidenses contra a guerra no Vietname.
No caso português, é de salientar, que a revolta estudantil pela liberdade se desenrolava num terreno bem diferente, pois em Portugal o regime não dava qualquer espaço para o exercício das liberdades democráticas e ameaçava com anos de cadeia a quem pusesse em causa a guerra colonial. Visto a esta distância é um verdadeiro contrassenso, mas a verdade é que a loucura brutal do regime foi paga pelos patriotas e democratas portugueses que foram perseguidos, presos, torturados e alguns assassinados.
Quando hoje setores da extrema-direita glorificam o regime salazarento colonial/fascista fazem-no com base numa espécie de amnésia que varre parte da sociedade portuguesa e que tem como objetivo branquear a repressão e o terror do ancient regime derrubado há 50 anos.
Como explicar a quem não vivenciou que quase todos olhávamos para todos para saber se víamos nesses rostos os informadores/bufos da PIDE?
Toda a vida dos cidadãos que apresentassem sinais de cultura cívica e política era espiolhada pela polícia política.
Andávamos sempre sobressaltados para saber se o fulano que se sentava na mesa ao lado no café era alguém que pretendia ouvir a conversa…
Todos os portugueses que ousassem afirmar-se na defesa das liberdades e da democracia eram invariavelmente seguidos e perseguidos.
Ao referir o que pelo mundo se passava, em termos das revoltas estudantis, vale como uma espécie de termómetro que em certos momentos históricos nos transmitem o sentido da inclinação do ponteiro da História, mesmo que ele só a concretizar-se um pouco mais à frente.
Na Universidade de Coimbra o tempo trazia dentro de si o casulo do novo tempo e daí a adesão dos jovens oriundos da pequena e média burguesia que chegavam para estudar e não se meter em política, acabando por se posicionar voltando as costas à tão desejada submissão secular da maioria das famílias.
Em abril de 1968, a Direção Geral da AAC recém-eleita, em nome dos estudantes da Universidade de Coimbra, pediu a palavra para na inauguração do edifício da nova Faculdade dizer, o que, do seu ponto de vista, era adequado.
O Presidente da Direção pediu a palavra ao Presidente da República que fez um sinal e pouco depois ele e toda a comitiva saíram provavelmente porque os seus ouvidos só podiam ouvir o que constituíam bajulices. Sabiam que iria reclamar a Reforma do Ensino e o direito a participar na vida académica.
Nesse mesmo dia, o Presidente da AAC foi preso e logo instaurados processos disciplinares ao conjunto da Direção. O choque foi tão brutal que se iniciou uma greve às aulas desde o mês de abril e que se estendeu aos exames.
Tudo porque na inauguração de um novo edifício da Faculdade de Ciências, os estudantes quiseram, através do seu representante, usar da palavra nessa cerimónia, tendo a nova construção como destino receber os alunos.
O regime fez tudo o que lhe foi possível para esmagar a rebelião estudantil: processos disciplinares, prisões, expulsões e incorporações compulsivas na tropa. A brutalidade já não era força, antes fraqueza. Esta e outras lutas estudantis e populares muito contribuíram para a sua queda.
Neste percurso cheio de intimidações e violências muitas vezes dava comigo a pensar – valerá a pena?
A família queria que estudássemos e não nos metêssemos em políticas, deixássemos “isso” para os outro.
Em dois anos vividos ativamente a consciência ditava-me que já não podia fechar os olhos ao que via e sentia. Do fundo dos nossos sentimentos de justiça algo me empurrava.
Fui preso pela PIDE à saída de uma audiência na Reitoria. Um PIDE apontou-me uma pistola e meteu-me num Ford escort vermelho. O mandado de prisão estava no cano da pistola. Era de manhã. Fiquei na sede da Pide em Coimbra e durante a noite transportaram-me a mim e a outros colegas para a prisão de Caxias.
Atravessámos a mata do Estádio Nacional e pouco depois surgiu o forte com um portão enorme e por ele entrámos a caminho do inferno. O que tinha ido para Coimbra estudar e não se meter em política entrava no reino da política do terror.
Tiraram-me o cinto e os atacadores dos sapatos para não me suicidar. Cortaram-me o bigode e o cabelo. O forte estava cheio de presos e ficou-me na memória o silêncio que reinava. O barulho das chaves nos portões. A cela. Não era má. Tinha uma secretária e uma casa de banho com duche. A janela com grades dava para o mar que mal se via. Sentia no nariz o cheiro a iodo. Ali estava. Preso aos 21 anos. Fora eleito para a Direção da AAC, mas o meu nome não fora homologado. Na Torre do Tombo quando consultei os dossiês que sobre mim havia lá descobri que me consideravam um agitador e um terrorista.
Durante a noite ficava acesa uma luz e de x em x horas o carcereiro vinha espreitar para ver se eu lá estava. Confesso que nunca me passou pela cabeça fugir, mas aos guardas isso não lhes passava pela deles.
Uns dias depois, a meio da noite, acordaram-me e mandaram-me vestir e que ia para uma festa. Atravessei parte da cidade e conduziram-me à Rua António Maria Cardoso. A entrada era tenebrosa. Lembro-me de uma escada que podia ser de um filme de terror.
Levaram-me para uma sala pequena. Uma secretária. Uma cadeira. Uma luz ténue e dois ou três Pides. O mais importante e palavroso era o Chefe Capela. Tinha cara de pardal. Que lhe estava a dar muito trabalho e a tirar horas de sono e para quê? Para nada. Ali ou se falava e confessava ou se saía herói estendido com os pés para a frente. Todos tinham devaneios, mas quando chegava aquela hora, percebiam que tudo esbarrava naquela muralha. Nada havia a fazer. Não pediam que concordasse com o regime, mas para quê meter-se em atividades contra o regime? Ainda por cima sabiam que eu era estudante comunista…loucura. Vida estragada. Ali ia ficar a pé, sem dormir para avivar a memória. E por ali estive não sei ao certo se três dias e quatro noites ou quatro dias e três noites. Lembro-me perfeitamente que os agentes se revezavam de 4 em 4 horas. Lembro-me de um que fazia de mau e outro de bom, de querer sentar-me na cadeira e o mau não deixar e o bom deixar uns minutos. Lembro-me do horror dos minutos, horas e dias e noites sem fim e sem dormir. E de pensar se seria como eles diziam, se me iam deixar assim até cair ou se dizia o que eles queriam que eu confessasse. É uma luta diabólica contra um ser abandonado, humilhado e violentado por dezenas de horas com a tortura do sono. Era a época de Carnaval. Pela cidade havia festas e a gente divertia-se. E eu ali entre quatro paredes a cair de sono aos trambolhões. O que me passava pela cabeça para acabar com o sofrimento, mas nos piores momentos vinha a força e mais um dia ou mais uma noite.
Tudo o que começa acaba e a tortura acabou. Foi a meio da noite. Veio o Chefe Capela dizer-me que ia para Caxias, mas que eles sabiam que eu não era nenhum anjinho como pensava o padre da minha aldeia, o padre Amorim, que pedia para rezar por mim (soube mais tarde) e isso irritava as autoridades e a PIDE.
Numa das noites de transporte da Caxias para a sede da PIDE passava por gente que se divertia, como seria natural. A verdade era que sentia uma espécie de incómodo que se resumia a isto, eu estava ali nas mãos da PIDE e, no entanto, podia estar, como os outros, a divertir-me.
Os ditadores conhecem o medo paralisante que impõe a violência e o terror. O peso dessa força de “gravidade” submete a maioria. É a normalidade sob a brutalidade. Os juízes dos Tribunais que julgavam os presos políticos sabiam bem o quão injustos e violentas eram as leis que com toda a normalidade aplicavam.
Os cidadãos que viam os oposicionistas serem presos e viravam a cara para o lado ou aceleravam o passo agiam com a normalidade instaurada e imposta.
Nestas circunstâncias a maioria tenderá a aceitar o poder instituído, mas haverá sempre os que se não vergam e com a sua luta levam ao desgaste do poder ditatorial, contribuindo para a o seu fim.
Em Portugal foram uma minoria os militares que se organizaram e deram o primeiro passo para derrubar o regime e logo foram seguidos pela população e pelos restantes militares pelos seus pares, tendo muitos “aderido” por receio das consequências.
A mais bela madrugada da nossa História é bem o exemplo de que ela foi urdida no tempo por todos quantos não desistiram e não se dobraram e quando ela explodiu todos a aplaudiram porque a nova normalidade estava a estabelecer-se ou dada como estabelecida.
Saído de Caxias, de regresso à vida, com a AAC encerrada, no final desse ano fui expulso por um período de um ano e meio da Universidade de Coimbra. O instrutor do processo foi Lucas Pires, escolhido pelo Diretor da Faculdade de Direito, um homem do regime fascista, Afonso Queiró. Propôs a minha expulsou por um período de 4 anos para ser decidido no Senado, caso contrário no Conselho da Faculdade talvez não passasse a proposta de expulsão. Porquê? Por ter participado numa reunião para apresentar a lista eleitoral para as eleições para os corpos gerentes da AAC, pois, segundo o Diretor da Faculdade, as reuniões estavam proibidas…mesmo havendo eleições e ser necessário apresentar listas.
Na Póvoa de Varzim, na altura do Verão, depois de jantar, no passeio junto ao mar, na Avenida dos Banhos, formava-se uma longa fila de veraneantes que desfilavam para oriente para o ocidente e vice-versa exibindo roupas e joias e paralelamente a este desfile de gente outro de carros fazia o mesmo percurso olhando-se reciprocamente admirando-se ou não.
Era uma exposição ambulatória da pequena e média burguesia do Norte e de Trás-os-Montes que em agosto descia ao mar e se exibia naquilo que era mais visto: vestuário e carros.
De que nos havíamos de lembrar: de fazer um programa de rádio, a que demos o nome de Lumicu, o nome popular de pirilampo que naquele tempo acendiam e apagavam nas calmas noites das aldeias da nossa cidade poveira.
A nossa ideia, minha, Manel Lopes, Quim Casanova, Zé Rui, e outros que não recordo, era fazer entrevistas a personagens populares da cidade, a primeira foi a um ardina, o Chaguinha, e passar música poveira, popular e do Zeca Afonso.
Na Câmara não viram mal no assunto e montámos na instalação sonora onde dominava o Roberto Carlos com o célebre Calhambeque e a Delilah do Tom Jones.
A entrevista do Chaguinha correu muito bem, com ele a garantir que os “amaricanos” não tinham ido à Lua e que era tudo uma treta, uma montagem.
O problema foi quando passaram as canções do Zeca Afonso. Não escolhemos as mais abertas contra o regime, apenas as mais suaves, mas passaram muito tempo.
A PIDE não dormia e no dia seguinte foi-nos dito que o programa já não iria para o ar. Apagaram a luz ao Lumicu. Mas aos pirilampos, ninguém os apaga, salvo a poluição.
LISBOA
A Liberdade finalmente
Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa o ambiente era similar. A certa altura agravou-se com a entrada de um corpo de gorilas para assegurar que não haveria qualquer espécie de reunião. Esse corpo de gorilas era composto por comandos que tinham estado na guerra e que devido ao seu poder físico entravam em confronto com os estudantes que apesar da intimidação se reuniam. Atacavam como se fossemos inimigos. Ainda tentámos uma vez, pressionados pelo grupo do MRRP, um confronto, mas era o terreno da provocação e não voltou a suceder.
Quando a polícia de choque perseguia os estudantes na Universidade Clássica corríamos para a Estrada de Benfica onde nessa altura circulavam elétricos o que permitia com meia dúzia de carros impedir a chegada das carrinhas da polícia de choque e assim distribuir panfletos à população.
Dizia-se então que foi por causa dessa escapatório que o governo mandou retirar os carris e acabar assim com os amarelos que tão bem coloriam a comprida Estrada de Benfica. Dizia-se.
Vivia-se com medo. Respirava-se medo. Dormia-se com medo de que nos batessem à porta durante a noite porque a PIDE também tinha medo da luz do dia. Viviam escondidos. Não se sabia quem eram. Desconfiávamos. O medo gerava a desconfiança e desconfiávamos uns dos outros.
Ao sair de casa olhávamos para todos os lados e para dentro dos carros parados para ver se descobríamos o pide de serviço.
Quando ligávamos o telefone, em certas ocasiões, ouvíamos um ruído estranho que ligávamos às escutas da PIDE.
Quando marcávamos uma reunião de camaradas do partido que não tinha mais de 3 para irmos para o local da reunião apanhávamos três transportes diferentes e seguíamos três direções opostas.
O Portugal de Salazar/Caetano era um país submetido por um regime que se mantinha devido ao medo que impunha.
As suas contradições foram-se tornadas tão agudas com as aspirações populares democráticas, com os povos colonizados que haviam de o fazer explodir.
Creio, a título pessoal, que a partir do momento que ganhei consciência da iniquidade do regime tinha duas formas de reagir. Ou ignorava a sua natureza terrorista. Ou levado pelo impulso generoso juvenil não me desligaria da luta por uma universidade e um país democráticos.
O regime tinha consciência que perdera a juventude universitária. Não quer dizer que a grande maioria estivesse pronta para se levantar, mas estava do lado dos dirigentes estudantis que com a sua determinação punham a nu a própria da natureza do sistema.
Como tantas vezes na História chega o momento em que as contradições atingem tal nível de agudização que as massas estudantis ou populares confiam nas possibilidades de mudar o quotidiano.
É raro, verdade seja dita. Mas o ser raro não quer dizer que não suceda, como se viu e experimentou nas várias crises académicas e nas lutas políticas que levaram ao 25 de Abril.
São estes os momentos raros que vale a pena vivê-los, pois neles sentimo-nos donos do destino. O peso da gravidade do poder já não é capaz de manter anestesiada a vontade de mudar. Explodiram as faíscas que incendeiam a pradaria na linguagem maoista de então. E, na verdade, os cidadãos ainda não têm a força para sair da sua vidinha, mas estão à espera dos mais corajosos.
O regime já só se aguentava pela força da repressão. Já perdera a força que o mantivera, a estabilidade, a paz corporativa, a autoridade como carta do poder, a ausência da disputa política. A guerra colonial isolou ainda mais o regime.
Era aqui neste tempo de opções que tinha de decidir: ou seguir os mandamentos familiares ou voar nas asas do vento da liberdade democrática.
Confesso que o entusiasmo pela participação política passava à frente, embora estudasse o suficiente para passar.
Face ao modo de viver das várias gerações que se vão sucedendo dou comigo a pensar que a geração dos anos setenta do século passado sentiu que estava a mudar a vida, ao contrário de outras gerações que se empenharam a fundo, mas não sentiram em profundidade que tinham na mão a possibilidade real de fazer acontecer o sonho que viviam e que as outras transportaram até àquele momento histórico.
São momentos únicos. Acumulava-se energia libertadora em todos os cantos do Planeta: Maio 68, Woodstock, movimentos pacifistas nos EUA contra a guerra no Vietnam, recrudescimento dos movimentos de libertação nacional nas colónias, onde a juventude tinha um papel determinante, aggiornamento na Igreja católica, convergência da oposição com a luta dos povos de Angola, Guiné, Cabo Verde e Moçambique. O caldo estava ao lume. A tampa ia voar. Não era difícil encarrilar. A consciência ia de mão dada com o próprio tempo.
É, no entanto, necessário escrever que naquela altura qualquer licenciado tinha emprego garantido para sempre e com ordenado bem acima da média. As profissões que implicam um curso superior não estavam sequer preenchidas, tal era o pequeno número de licenciados.
Neste contexto, do ponto de vista político, o futuro era muito negativo, mas do ponto de vista profissional, tirando o acesso à Administração Pública (o regime controlava e queria continuar a fazê-lo) os licenciados paradoxalmente tinham possibilidades de emprego e com remunerações razoáveis, bem diferentes das de hoje.
Os militares do quadro, os jovens capitães, os trabalhadores que suportavam uma exploração desenfreada, os jovens estudantes cujo futuro estava marcado a negro com as guerras coloniais, tudo convergiu para derrubar o regime conquistar a liberdade e pôr termos à guerra.
Tinham-me dado a notícia que um preso do setor intelectual do partido teria referido o meu nome e daí o aviso para limpar a casa de panfletos e de coisas comprometedoras. A reunião fora no dia 24 de abril. Durou até às 23 h. Vim para casa a pensar no futuro bem sombrio. Voltar a ser preso, ser condenado e não terminaria o curso naquele ano, pois estava no 5º ano de Direito.
Pelas escadas de serviço levei a papelada comprometedora para o telhado da casa, exatamente ao meio onde batiam os telhados das duas casas. Sem ninguém ver. Nem os colegas de casa. Às escuras, sendo o medo de cair menor que o medo de ser preso com aqueles Avantes e Militantes.
Quando acabei, fui dormir e acordaram-me, batendo à porta com o punho e não à campainha. Julguei que tinha chegado o momento de me levarem para Caxias. Olhei pelo ralo. Não era a PIDE, era o Valadas. Abri a porta. Ele disse-me – Liga a rádio. Ainda ficamos à espera, a desconfiar. A certa altura aquela era de facto a madrugada libertadora. Quando rompia a luz da manhã nas janelas que se abriam não havia medo, nem desconfiança, apenas um sorriso. Tinha chegado finalmente o dia. Tanto sacrifício de tantas gerações valera a pena.
Na primeira segunda-feira a seguir ao 25 de Abril de 1974 havia aula do Professor Cavaleiro Ferreira, o ministro responsável pela introdução das medidas de segurança após os presos terem cumprido a pena, o que significava que a PIDE considerasse, num juízo de prognose, que uma vez cumprida a pena decretada pelo “tribunal” o cidadão iria muito provavelmente continuar a sua atividade política então era-lhe aplicada por esta via uma nova pena. Levando a que às penas judiciais se juntassem estas, o que fazia com que os presos ficassem presos muito mais anos do que a pena a que tinham sido condenados.
Os meus companheiros escolheram-me para no início da aula levantar-me e argumentar que já não podia dar mais aulas na Faculdade, tendo em conta o famigerado passado que levou dezenas de cidadãos a passar anos e anos na prisão, mesmo após terem cumprido a pena.
Confesso que estava um pouco nervoso, mas, quando o enfrentei, vi que ele estava muito mais. Acabei a intervenção e por mais anos que viva não esqueço que todos se levantaram a gritar, O povo unido jamais será vencido. O Professor saiu. Foi o primeiro saneamento na Faculdade de Direito. O seu afastamento e do Professor Martinez, Diretor da Faculdade eram justíssimos, pois representava o que de pior tivera o regime, as medidas de segurança e a entrada dos gorilas na Faculdade transformando-a numa verdadeira selva. Mais tarde, até o Martinez regressou pela mão de ex-MRPPês. É a vida.
Mesmo passado anos (hoje já não) ainda olhava, à saída de casa, para um lado e para o outro a ver se descobria o que já não existia.
Saborear a liberdade tem um valor incalculável. Não tem preço. A liberdade, tal como a paz, são valores de uma dimensão quase infinita.
Entretanto, a vaga neoliberal veio varrer todo o sistema e transformar a economia numa imensa Bolsa de Valores. A economia transformou-se num enorme Casino com a roleta viciada. Só há lugar para os multibilionários e seus sacerdotes. Na própria U.E o guião é o mesmo el vai rebentando pouco a pouco com a base em que durante décadas assentou o sistema de coesão social de que a CEE era expressão.
Utilizando sofisticadas técnicas de divisão entre jovens e os mais idosos, o sistema conseguiu em parte responsabilizar os mais velhos pela incapacidade de as gerações mais jovens bem qualificadas não conseguirem ter acesso a vida decente.
Em liberdade e em paz poderemos sempre ter a possibilidade de escolher o futuro por muito complexos difíceis que sejam os problemas.
Foi o 25 de Abril que trouxe a amada liberdade. São muitos, e alguns graves, os problemas que o país atravessa. Há até perda de confiança quanto ao futuro. Há desespero. Há incapacidades governamentais e injustiças agudas. Há portugueses a viver mal. Há descrença a substituir a esperança. Há mal-estar.
Há, no entanto, quem saiba distinguir entre o que está mal e a possibilidade de resolver problemas. E aí está a liberdade. É ela que nos pode devolver a confiança no nosso futuro coletivo. É a liberdade que nos irá permitir transformar as nossas vidas para serem desfrutadas com decência.
Sei que a liberdade pode ser oca, vazia, mas é sempre a liberdade e meio caminho andado para a encher com os direitos modernos, sociais, culturais, económicos e ambientais. Sem ela, os direitos ficam mais longe.
O que foi, já passou. Mas a memória da força do passado contém energias que a juntar à das lutas por esses direitos dar-nos-ão força de que precisamos para construir um mundo melhor, o velho sonho dos humanos. Venham mais 50 anos.
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