O mundo está a mudar. O processo em curso traz dentro de si contradições, por vezes, violentas. É obra das forças que não aceitam o status quo e sentem que possuem a força para mudá-lo.
Na guerra da Ucrânia confrontam-se forças que pretendem operar a mudança de paradigma na relação de forças à escala mundial e aquelas que querem manter a unipolaridade.
O grande confronto é entre a Rússia e os EUA/UE/OTAN, mas na realidade é apenas uma parte desse confronto, pois basta abrir a mente para ver que é entre o Ocidente/EUA e seus aliados e a Rússia, China, Irão, e de uma forma mais esbatida, mas real, com os BRICS e o chamado Sul global. A Conferência de Shangai é um testemunho eloquente desta contradição.
O confronto militar sendo o eixo do conflito, até pode não ser o que é mais importante nele. A guerra não é destinada a ocupar a Ucrânia, mas sim para obter uma resposta a um avanço do Ocidente /OTAN no sentido de se colar à Rússia (entrando para a OTAN) e empurrá-la para as estepes da Ásia Central, retirando-lhe qualquer centralidade europeia, tal como consta em vários documentos, designadamente no think-tank Rand Corporation, ligada ao Pentágono.
Tal como os EUA se sentiam ameaçados em 1962 com os mísseis nucleares soviéticos em Cuba, e que quase levou o mundo a uma guerra nuclear, também a Rússia se sente ameaçada com a entrada da Ucrânia na OTAN, tanto mais quanto em 09/02/1990, James Baker, Secretário de Estado dos EUA, concordou com Gorbatchov que a expansão da OTAN para Leste era inaceitável…National Security Archive, OTAN expansion: What Gorbatchov heard, Declassified documents.
Esta era e é a questão central – redesenhar uma nova arquitetura de segurança e cooperação na Europa e no mundo. A segurança de uma potência não pode ser levada a cabo com a insegurança da(s) outra(s).
Todas as tentativas de envelopar o conflito nas chamadas normas morais liberais do Ocidente esbarram na História e sobretudo no atualíssimo genocídio em Gaza com o apoio do Ocidente, incapaz de aplicar a Israel a mais residual das sanções político/económicas.
A moralidade moraria no eventual resort de Trump em Gaza, a construir sobre os esqueletos dos palestinianos, já sem a coragem que teve Tamerlão no século XIV que ordenava a construção de torres, mesquitas e madrassas sobre dezenas e dezenas de milhares de prisioneiros dos povos derrotados.
Agora em Gaza Netanyahu e Trump encarregam os aviões, os tanques e a fome de matar os palestinianos sobre os quais se Trump poderia mandar construir as estâncias e receber o prémio Nobel da paz por acabar guerras que não acabaram e que os EUA começaram ou alimentaram.
A mudança no mundo tornou-se inevitável e possível. Trump e os seus conselheiros aperceberam-se desse facto e pretendem, dentro dessa perspetiva, diminuir as possibilidades da sua concretização ou e atenuar os efeitos.
O grande adversário da potência em perda da hegemonia é a China. Da outra banda, a Rússia não sucumbiu e torneou, para já, os obstáculos de natureza económica, e fez gorar as sanções de um Ocidente incapaz de ver o mundo como ele é, sobretudo a elite dirigente da UE que se bate pelos seus privilégios, de costas voltadas para os povos e países que a integram. Acresce que a nova Administração tenta separar a Rússia da China, na esteira de H. Kissinger.
Por outro lado, Trump quer evitar a derrota na Ucrânia, pois de contrário teria de escalar para um outro patamar incontrolável e incerto. E para tanto veste-se de negociador, o chefe do país sem a participação do qual a guerra já teria acabado. Percebe-se, uma vitória da Rússia deixaria os EUA de rastos interna e externamente, e daí a negociação com a Rússia.
Ao contrário do que afirmou Marcelo na universidade de verão dos jotas do PSD, o grande objetivo de Trump é enfraquecer Putin e a Rússia. A diferença entre o poder real e anulidade absoluta é a boutade de Marcelo. Ele e os líderes da UE são na verdade um ativo da distopia europeia, incapazes por anquilose de sair da derrota estratégica da Rússia e perseguir essa ilusão antiga e falida.
Neste confronto entre titãs, há um anão que se põe em bicos de pés para ser visto, a liderança da UE. Vivem entre privilégios e temem perdê-los. A denegação é o seu estado de espírito.
E, no entanto, como afirmou Galileu aos seus carrascos /juízes Eppur si muove, o que a fixação nas suas cadeiras de poder, agora em Bruxelas, não os deixa aperceberem-se. E, no entanto, o mundo dirige-se inexoravelmente para a multipolaridade.